Recurso extraordinário interposto por parte de Estado.
EXMO. SR. DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO
DO ....
APELAÇÃO CÍVEL Nº .......
APELANTE: ESTADO DE .....
APELADO: ........
O ESTADO DE ......., já devidamente qualificado nos autos do processo em que
contende com ....., não se conformando, data venia, com a r. decisão deste
Egrégio Tribunal, que houve por bem dar provimento parcial à remessa ex officio,
vem, mui respeitosamente, interpor
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
em conformidade com o que dispõe o artigo 102, inciso III, alínea "a", da
Constituição Federal, para o Colendo Supremo Tribunal Federal, visando
desconstituir, parcialmente, o v. acórdão, pelo que junta à presente as suas
razões de recurso, como de direito.
Nesses Termos,
Pede Deferimento.
[Local], [dia] de [mês] de [ano].
[Assinatura]
EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
APELAÇÃO CÍVEL Nº .........
RECORRENTE: ESTADO .........
RECORRIDO: ..........
O ESTADO DE ......., já devidamente qualificado nos autos do processo em que
contende com ....., não se conformando, data venia, com a r. decisão deste
Egrégio Tribunal, que houve por bem dar provimento parcial à remessa ex officio,
vem, mui respeitosamente, interpor
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos.
RAZÕES RECURSAIS
COLENDA SUPREMA CORTE,
DOS FATOS
Constituem fatos incontroversos necessários ao julgamento do presente recurso:
1.O recorrido é um conhecido político de Alagoas, que sempre obteve bom
desempenho nos pleitos em que se candidatou;
2. enquanto esteve à frente da Secretaria de Planejamento do Estado de
................., no Governo do Senhor ............, lançou o "Projeto
'.............'", visando abrigar e educar menores abandonados;
3. por estarem pairando suspeitas de irregularidades em torno do referido
Projeto, o então Vice-Governador do Estado, Dr. ................., "considerando
a necessidade de esclarecer a opinião pública sobre as atividades do Projeto
....................", baixou, no exercício da Governadoria, a Portaria n. 18,
de 7 de janeiro de 1988, nomeando uma Comissão de Sindicância, com o objetivo de
"procederem a rigorosa sindicância sobre o referido Projeto, particularmente no
tocante ao levantamento e emprego de recursos arrecadados diretamente da
população";
4. a Comissão de Sindicância, ao apurar o caso, concluiu que existiam, de fato,
irregularidades em torno do Projeto "..............", opinando pela sumária
exoneração do recorrido, por se tratar de cargo de confiança, demissível ad
nutum, devendo as demais responsabilidades ser apuradas pelos órgãos
competentes;
5. tendo sido a "notitia criminis" enviada ao Ministério Público estadual, houve
a determinação de abertura de inquérito policial, na estrita forma da legislação
aplicável;
6. em 9 de maio de 1988, seguindo o procedimento prático e comum antes da
Constituição 5 de outubro de 88, o recorrido procedeu a sua identificação
criminal;
7. após a conclusão do inquérito policial, a Procuradoria Geral de Justiça,
diante dos indícios da existência do crime e de sua autoria, denunciou o
recorrido por crime de peculato;
8. o magistrado processante do delito, após verificar a presença dos seus
pressupostos, recebeu a denúncia, prosseguindo, em conseqüência, à instrução
criminal;
9. após todo o trâmite do processo criminal, seguindo a orientação do Ministério
Público em suas alegações finais, o Tribunal de Justiça, por seu órgão pleno,
decidiu que "não havendo prova de haverem os indiciados praticado os crimes
previstos a denúncia, devem ser eles absolvidos, nos termos do artigo 386 - VI
do Código de Processo Penal";
10. durante o período em que estava respondendo pelo processo criminal, o
recorrido teve a sua imagem pública denegrida, em face da divulgação, pelos
meios de comunicação locais, de matérias negativas a seu respeito. Em razão da
campanha engendrada pelos meios de comunicação, o recorrido, candidato a
Prefeito de .............. no pleito de 1988, obteve apenas 552 votos, bem
abaixo do número de votos que costumava obter na Capital, em eleições
anteriores. Por este motivo, optou o recorrido por ir morar no Rio de Janeiro,
onde possuía grande prestígio como jornalista e já tinha um projeto para
escrever um livro sobre a política alagoana.
Estes são os fatos, não havendo quanto a eles nenhuma controvérsia. A valoração
das provas, portanto, é totalmente desnecessária, não incidindo, no caso, a
vedação da súmula 279 do STF.
DO DIREITO
Com base nestes fatos, a 1a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de
Alagoas, confirmando, em parte, a v. sentença monocrática, assim decidiu,
resumidamente:
1. por conta da divulgação dos fatos relacionados com o Projeto
"..............", o recorrido foi submetido a um desgastante processo de
desmoralização e execração pública, somente corrigido quando do decisum
absolutório proferido na instância superior;
2. "a apuração dos fatos atinentes ao Projeto '..............' produziu uma
cadeia de efeitos lesivos, atingindo o autor em sua honra e imagem de homem
público, fruto de uma imputação caluniosa, o que gerou seqüelas de ordem moral,
traduzidas na crescente diminuição do conceito e do prestígio político
desfrutados pelo Autor" (fls. 115). Razão pela qual, confirmou-se a sentença no
que tange à condenação do Estado pelos danos morais, com a ressalva da forma de
sua execução (v. fl. 117);
3. quanto ao dano material, a Corte Estadual decidiu que "inexiste nos autos
qualquer tipo de prova quanto a tal lesão, sequer um único documento foi anexado
para a devida comprovação do alegado. Por outro lado, não se pode entender como
dano patrimonial a derrota sofrida na eleição para Prefeito de ..............
(...). Assim sendo, há que se inacolher a pretensão indenizatória manifestada no
aspecto inerente ao dano patrimonial" (fl. 115);
4. por fim, após analisar a responsabilidade do Estado, o v. acórdão conclui que
o decisum de 1o grau merece reparo em dois aspectos: 1. quando acolhe a
pretensão ressarcitória por danos materiais; 2. quando determina a apuração dos
danos morais mediante perícia, em liquidação, ao passo que o correto seria
determinar a liquidação por artigos, vez que há necessidade de se provar fatos
novos para determinar o valor da condenação.
A responsabilidade civil do Estado pela reparação dos supostos danos morais e à
imagem causados ao recorrido foi fundamentada pela Corte de Justiça Estadual
unicamente com base em dispositivos constitucionais, quais sejam:
"Art. 5º. (...)
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de
indenização por dano material, moral ou à imagem; (...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação".
E mais:
"Art. 37. (...)
§ 6o - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa
qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o
responsável nos casos de dolo ou culpa".
Tendo como únicos fundamentos os dispositivos constitucionais acima transcritos,
mostra-se irrefutável o cabimento do presente Recurso Extraordinário, não
incidindo, na hipótese, a vedação da súmula 283 do STF. Vale dizer: não se valeu
o v. acórdão, para condenar o Estado a indenizar o recorrido, da
responsabilidade subjetiva, mas tão somente da responsabilidade objetiva, sem
culpa.
Ao cabo da presente petição, será demonstrado que o v. acórdão contraria
frontalmente o próprio §6o, do art. 37, da Constituição, que lhe serviu de
fundamento, razão pela qual merece ser reformado, afastando-se, integralmente, a
responsabilidade civil do Estado.
Qunato ao prequestionamento, a matéria foi amplamente debatida nos autos. Aliás,
o próprio ponto nodal da questão é, justamente, saber se, no caso, está
configurada ou não a responsabilidade civil do Estado e se, em conseqüência, tem
o Poder Público o dever de indenizar os danos morais sofridos pelo recorrido, em
razão de haver procedido a investigação criminal de um suposto delito por ele
cometido e que, ao final do processo-crime, foi julgado improcedente,
decretando-se a sua inocência por insuficiência de provas.
As premissas para o reconhecimento da responsabilidade do Estado foram as
seguintes: 1. o recorrido foi submetido a investigação criminal, cujo
procedimento foi desencadeado por uma portaria do Chefe do Executivo, e, em
razão da divulgação sensacionalista dos fatos pela imprensa local, a sua imagem
pública foi denegrida; 2. a Comissão de Sindicância, logo no início, não foi
capaz de elucidar toda a questão, devendo ter propiciado aos sindicados o
contraditório e a ampla defesa; 3. o prosseguimento do inquérito pela autoridade
policial, com o posterior oferecimento da denúncia pelo Ministério Público,
seguido do seu recebimento pelo magistrado processante, ocorreram de forma
equivocada por parte dos agentes públicos respectivos; 4. a responsabilidade
civil do Estado é objetiva, fundada no risco administrativo, dispensando a prova
da culpa da Administração, bastando tão somente o nexo de causalidade entre a
conduta e o dano; embora escamoteadas por uma aparente legalidade ou licitude,
houve abuso de direito por parte dos agentes públicos, cabendo a Administração
responder pelas conseqüências danosas que dele resultar.
Conforme será demonstrado, essas premissas são falsas e completamente contrárias
ao que determina o §6o, do art. 37, da Constituição Federal, ressalvado, é
óbvio, ao que tange à doutrina da responsabilidade civil do Estado que,
realmente, é objetiva, dispensa a prova da culpa, sendo necessário tão somente a
demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
Ao fim destas razões, chegaremos às seguintes conclusões, bastantes ao
acolhimento do presente recurso:
1. malgrado seja a responsabilidade do Estado objetiva, fundada na teoria do
risco administrativo, cuja comprovação não exige a demonstração de culpa por
parte do Poder Público, é irrefutável que a Administração não responde por atos
de terceiros, no caso, a imprensa. Em outras palavras: os danos causados à
imagem do recorrido, de fato, existiram, mas foram causados unicamente por atos
da imprensa local, razão pela qual o Estado não pode ser responsabilizado;
2. não houve nexo de causalidade entre os atos dos agentes públicos e os danos
sofridos pelo autor;
3. os agentes públicos, jungidos que estão ao princípio da legalidade e da
oficialidade, têm o dever de impulsionar a persecução criminal. No caso, a
autoridade policial agiu dentro do estrito cumprimento de seu dever legal, sendo
certo que, antes da Constituição de 1988, não constituía constrangimento ilegal
a submissão do indiciado à identificação criminal. Da mesma forma, o Promotor de
Justiça ofereceu a denúncia seguindo seu dever funcional, e o juiz a recebeu de
acordo com a sua íntima convicção, ainda perfunctória, resultante de um juízo
provisório e preliminar, sendo certo que os atos jurisdicionais, salvo previsão
legal, não ensejam a responsabilidade civil em caso de eventual erro;
4. o Estado não pode ser responsabilizado civilmente por atos legítimos de
persecução criminal, que se deram dentro dos limites autorizados por lei, e em
obediência ao due process of law, porquanto os ônus decorrentes de uma
persecutio criminis são normais, inerentes à própria natureza da processo,
devendo ser suportados pelos administrados em nome do interesse público;
5. o jus puniendi não apenas é um direito do Estado, como também um dever,
mormente em face da entronização do princípio da moralidade no texto
constitucional;
6. o recorrido foi absolvido por insuficiência de provas, o que demonstra que os
atos de persecução criminal foram não apenas lícitos e legais como, igualmente,
legítimos, afastando toda e qualquer responsabilidade objetiva do Estado, até
porque os danos foram causados não pela persecução penal, mas pelas maliciosas e
sensacionalistas notícias veiculadas pela imprensa, notícias estas das quais o
Estado não teve qualquer participação;
7. por fim, mas não menos importante, com base no critério da dimensão de peso e
importância dos princípios constitucionais, verificar-se-á que o interesse
público, decorrente da elucidação dos fatos supostamente irregulares, deve
prevalecer no caso em questão, pois este foi e é o valor constitucional que o
ordena-mento jurídico, em seu conjunto, desejou - e deseja - ver preservado,
principalmente por se tratar o recorrido de um homem público, sujeito a uma
fiscalização social mais rigorosa.
Constitui ponto pacífico: a responsabilidade extracontratual do Estado por danos
derivados de comportamentos administrativos de seus agentes é objetiva, ou seja,
independe da culpa do agente. É o que se extrai de uma adequada ilação do
dispositivo constitucional insculpido no § 6o, art. 37:
"§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa
qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o
responsável nos casos de dolo ou culpa."
Com efeito, evoluindo da total irresponsabilidade dos atos praticados pelos
agentes públicos, em decorrência do princípio norteador dos regimes absolutistas
segundo o qual o rei nunca erra ("the king can no wrong"), o conceito de
responsabilidade pública da Administração, sempre crescendo em direção à
proteção dos Administrados, atingiu um estágio de evolução - compatível com o
espírito democrático e solidário de um Estado de Direito - pelo que a obrigação
de indenizar surge tão só da equação: FATO + DANO + NEXO CAUSAL. É a Teoria do
Risco Administrativo, na qual a jurisprudência pátria tem-se firmado:
"RESPONSABILIDADE CIVIL DO PODER PÚBLICO - TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO -
EXEGESE. De acordo com o art. 37, § 6º, da CF, as pessoas jurídicas de direito
público respondem pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros. Nosso legislador constitucional adota a teoria do risco
administrativo, e por esta não se exige a prova da culpa do agente público. São
suficientes para caracterizar a sua responsabilidade a prova do dano causado
pelo agente público e o nexo causal entre a ação do agente e os danos" (STJ -
Ac. unân. da 1ª T. publ. em 8-11-93 - Rec. Esp. 38.666-7-SP - Rel. Min. Garcia
Vieira - Advs.: Maria Beatriz de Biagi Barros e Carlos Alberto de Freitas).
Quanto a esta matéria, o v. acórdão não destoou, consignando expressamente ser,
realmente, objetiva a responsabilidade extracontratual do Estado.
Bastam, portanto, a demonstração de apenas três fatores para que se configure
responsabilidade da Administração, a saber:
a) que haja um fato, uma ação ou omissão de um agente estatal (lato sensu),
implicando tal conduta ou ação num evento danoso;
b) que haja um dano, ou melhor, uma vítima lesada em decorrência daquele fato
comissivo ou omissivo;
c) e finalmente, que haja um nexo de causalidade entre o fato e o dano, ou seja,
um vínculo entre a causa e o efeito.
Feitas essas brevíssimas anotações teóricas acerca da responsabilidade civil do
Estado, passemos à análise da primeira premissa hábil a exonerar o Estado de
Alagoas de qualquer responsabilidade no presente caso: a Administração não
responde por atos de terceiros.
Ensina a moderna doutrina administrativista, cujas lições são integralmente
ecoadas na jurisprudência pátria, que o Estado não responde objetiva-mente por
atos de terceiros, que não sejam agentes públicos. Em casos tais, a
responsabilidade do Estado é condicionada à demonstração da culpa do serviço
público (faute du service). Nesta hipótese, explica DI PIETRO, "o Estado
responderá se ficar caracterizada sua omissão, a sua inércia, a falha na
prestação do serviço público" (Direito Administrativo. 10a ed. Atlas, São Paulo,
1999, p. 425). É o caso, por exemplo, de danos causados por delinqüentes ou por
multidão: a responsabilidade estatal fica jungida à demonstração da omissão
culposa do Estado.
No caso dos autos, os danos morais causados à imagem do re-corrido - que não se
discute - não se deu por ato da Administração, mas - isto sim - única e
exclusivamente pela "malévola publicidade promovida" (fl. 10). Tanto é verdade
que, em seu pedido, suplica o recorrido pela condenação do Estado pelos "danos
morais conseqüentes da publicidade da calúnia forjada pelos agentes do Réu e que
denegriu a sua reputação, assegurando-lhe, às expensas dele, Réu, o direito a
uma reparação pela divulgação da verdade dos fatos através dos mesmos meios de
comunicação usados para noticiar a calúnia e na mesma proporção..." (fl. 26).
Ora, quem divulgou os fatos - de forma, a princípio, maldosa - foi a imprensa.
Esta - e somente esta - é quem deve responder pelos danos causados à imagem do
recorrido.
Com efeito, o Estado, na atual fase de evolução do nosso constitucionalismo, não
possui nenhuma interferência no que concerne ao controle dos meios de
comunicação. A Carta Magna é bastante clara quanto a isto:
"art. 5º (...). IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".
"art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação,
sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição,
observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena
liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social,
observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e
artística".
Não há que se falar, desta forma, em omissão culposa: o Estado não tem o dever -
nem mesmo a faculdade, assinale-se - de interferir nos meios de comunicação de
massa, salvo naquelas excepcionais situações discriminadas na própria Carta
Magna. Esta constatação é ainda mais marcante se levarmos em conta que o
princípio da publicidade informa, por força mandamental da Lei Fundamental, os
atos da Administração Pública (art. 37, caput, da CF/88). Assim, o Poder Público
estadual não pode ser responsabilizado, de qualquer forma, por atos praticados
pela imprensa: já vimos que o Estado não responde por atos de terceiros.
Dessume-se, portanto, que ação deveria ter sido instaurado contra os meios de
comunicação que divulgaram as matérias que denegriram a imagem do recorrido,
nunca contra o Estado.
Explica CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO que, "nos casos de responsabilidade
objetiva o Estado só se exime de responder se faltar o nexo entre o seu
comportamento comissivo e o dano. Isto é: exime-se apenas se não produziu lesão
que lhe é imputada ou se a situação de risco inculcada a ele inexistiu ou foi
sem relevo decisivo para a eclosão do dano" (Curso de Direito Administrativo. 5a
ed., Malheiros, São Paulo, 1994, p. 498).
Sem receito de equívoco, não se faz presente, na hipótese dos autos, o nexo de
causalidade, que é um pressuposto fundamental à configuração da responsabilidade
extracontratual do Estado. É óbvio que, sem a instauração do processo, não
haveria a divulgação de sua existência - naturalmente não. Contudo, é de
evidência solar que a mera existência do processo não foi a causa precípua do
dano (conditio sine qua non). Não se deveu a ele a produção do evento lesivo. Ou
seja: inexistiu a relação causal que ensejaria a responsabilidade do Estado.
A pergunta que se faz para resolver toda a questão é a seguinte: a lesão à
imagem do recorrido foi determinada por algum comportamento do Estado? É
evidente que não. Afinal, não foi o Estado quem veiculou as notícias que
denegriram a boa reputação do recorrido.
No caso, responsabilizar o Estado pelos danos à imagem do re-corrido, seria o
mesmo que, num processo criminal, condenar os pais de um assassino pela prática
de um homicídio; afinal, se os pais do criminoso não o tivessem posto no mundo,
o crime nunca teria ocorrido. O absurdo deste falso silogismo, mutatis mutandis,
é o mesmo que se faz ao reconhecer a responsabilidade do Estado neste caso.
A lição dos penalistas podem ser - e são - bastante úteis para aferir a
existência ou não do nexo de causalidade ("vínculo de conhecimento") no caso ora
em debate. Dizem eles que "somente no caso em que se verifique uma interrupção
de causalidade, ou seja, quando sobrevém uma causa que, sem cooperar
propriamente com a ação ou omissão, ou representando uma cadeia causal autônoma,
produz, por si só, o evento, é que este não poderá ser atribuído ao agente, a
quem, em tal caso, apenas será imputado o evento que se tenha verificado por
efeito exclusivo da ação ou omissão" (TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios
Básicos de Direito Penal. 5a ed. Saraiva, São Paulo, 1999, p. 112). Portanto,
extrai-se que nem tudo quanto contribui, in concreto, para o resultado é causa,
sob pena de levar ao infinito, regressivamente, a cadeia causal. É a teoria da
conditio sine qua non, pela qual só há de haver um vínculo causal normativo
derivado da própria causalidade material ou concreta. Assim, na correta
advertência de BAUMANN, quando falamos em nexo de causalidade, queremos
significar somente a relação existente entre a ação e o resultado imediatamente
derivado da ação.
Trazendo essas abstratas teorias para a concreta hipótese dos autos, percebe-se,
sem muitas dificuldades, que a divulgação da notícia pelos meios de comunicação
foi causa superveniente, absolutamente independente da ação estatal, que, por si
só, produziu o resultado danoso, qual o de macular a imagem do recorrido.
Conclui-se, neste ponto, que, ante a ausência de nexo de causalidade entre a
ação dos agentes estatais e o dano à imagem do autor, a responsabilidade
extracontratual do Estado deve ser afastada. Afinal, como já decidiu o Pretório
Excelso, "fora dos parâmetros da causalidade não é possível impor ao Poder
Público o dever de indenizar" (RE 159.925-SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO).
III.IV - O DEVER DE IMPULSIONAR A PERSECUÇÃO CRIMINAL
Um ponto fundamental à justa solução do caso concreto ora em debate é saber se
houve alguma forma de abuso de poder no procedimento de persecução criminal
impulsionado pelos agentes estatais ou se, ao contrário, tal procedimento
pautou-se dentro dos estritos limites da legalidade e, sobretudo, da
legitimidade.
Nesse diapasão, antes de mais nada, é preciso assinalar que constitui dever de
todos os agentes públicos, em todos os níveis e graus, levar ao conhecimento da
autoridade competente as irregularidades de que tenha ciência em razão do cargo.
Trata-se, no caso, de um dever que ganhou ainda mais importância em face da
constitucionalização do princípio da moralidade administrativa, inserto no caput
do art. 37, da CF/88.
A não obediência, por parte do agente público, deste dever funcional pode
configurar, inclusive, o crime de prevaricação ou de condescendência criminosa,
tipificados, respectivamente, nos arts. 319 e 320, do Código Penal pátrio
("retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo
contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento
pessoal" e "deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar
subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte
competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente").
No caso ora em debate, à época em que os fatos vieram à tona, havia fortes
indícios e rumores de que, efetivamente, estavam ocorrendo irregularidades em
torno do Projeto "..............". Tais rumores não só podiam como deveriam, em
nome do princípio da moralidade, ser apurados minuciosamente. E assim ocorreu.
Ao formar a Comissão de Sindicância, o Governador do Estado, em exercício, nada
mais fez do que concretizar, isto é, realizar o princípio constitucional da
moralidade, seguindo o dever que lhe é imposto por lei, qual o de não
condescender com crimes supostamente cometidos por um agente público por ele
nomeado, sob pena de ser-lhe imputado crime comum e mesmo de responsabilidade.
As conclusões a que chegou a Comissão foram perfeitamente normais e adequadas à
espécie: exonera-se o ocupante de cargo em comissão (nem precisaria de
sindicância para isto) e remetem-se os autos à autoridade competente (Ministério
Público) para que seja apurada, na forma devida e legítima, a responsabilidade
criminal. Onde estaria o abuso?
O membro do Parquet, ciente de que aquele sindicância não continha elementos
bastantes para o oferecimento da denúncia, ato contínuo, deter-minou a abertura
de inquérito policial para que fosse aferida com mais pormenores e precisão a
presença dos pressupostos necessários ao oferecimento da ação penal pública.
Onde estaria o abuso?
O delegado de Polícia, obrigado que está a instaurar o inquérito, agiu
corretamente durante todo o iter procedimental, inclusive no que tange à
identificação criminal do indiciado, tendo em vista que, à época (antes da
CF/88), tratava-se de uma praxe comum, que não constituía constrangimento
ilegal, conforme, inclusive, havia sumulado este Egrégio Supremo Tribunal
Federal (súmula 568 do STF: "a identificação criminal não constitui
constrangimento ilegal, ainda que o indiciado já tenha sido identificado
civilmente"). Onde estaria, portanto, o abuso?
Seguindo a ordem dos fatos e o mesmo raciocínio:
O órgão ministerial, agindo com a atenção e cuidado que lhe são próprios,
analisou acuradamente os fatos alegados e os indícios de materialidade delituosa
e de sua autoria, contidos no inquérito, concluindo pela existência dos
pressupostos necessários para oferecimento da denúncia. Por essa razão, dada a
indisponibilidade da ação penal pública, outra opção não teve: apresentou a
denúncia. Onde estaria o abuso?
Em seguida, o douto magistrado processante do feito, analisando
perfunctoriamente a peça delatória, como há de ser em casos tais de juízo
provisório, vislumbrou a presença dos requisitos para o seu recebimento,
restando-lhe tão somente recebê-la e impulsionar o seu processamento. Se, anos
depois, os réus foram absolvidos por insuficiência de provas, ter-se-á, então,
uma nova verdade processual, mas não se poderá dizer que o juiz, ao receber a
denúncia, cometeu algum erro ou abuso; afinal, naquele momento, o recebimento da
denúncia estava perfeitamente justificado. Ademais, não é despiciendo lembrar
que a responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos do Poder
Judiciário em sua função jurisdicional, a não ser nos casos expressamente
declarados em lei. Onde estaria, então, o abuso?
É certo que, ao término da instrução criminal, o Tribunal de Justiça do Estado
absolveu todos os indiciados, seguindo a própria opinião do Ministério Público,
titular da ação penal. Mas absolveu por não existirem nos autos provas
suficientes à condenação, conforme consignou a ementa do acórdão: "não existindo
prova suficiente dos acusados haverem praticado os crimes imputados na denúncia,
serão os mesmos absolvidos nos termos do art. 386 - VI Código de Processo Penal"
(fl. 59).
Por certo, se abuso houve, foi apenas na mentalidade fértil e maliciosa da
imprensa, que, a despeito do princípio constitucional de presunção de inocência,
estigmatizou o recorrido como um criminoso, divulgando os fatos que ainda
estavam sub judice, como se verdades fossem. Quanto a isto, o Estado nada
poderia fazer, jungido que estava à obediência ao princípio constitucional da
liberdade de expresssão.
No mais, é preciso ter em mente que a simples movimentação da máquina
persecutória criminal não constitui ato lesionador de direito individual. Todos
os atos do agentes públicos, portanto, estavam e estão inseridos "em um sistema
que, tendo por corolário o dever do Estado, objetiva a prestação da segurança
pública, a apuração das infrações penais e a punição dos infratores" (cf. voto
vencedor do Min. Maurício Corrêa, proferido na ADIn 1.517-UF).
Nesse sentido, de acordo com a lição de RUI STOCO, "a simples improcedência da
ação penal não acarreta a responsabilidade civil para o vencido"
(Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial, 2ª ed., Ed. RT, SP,
1995, pág. 247).
Sobre o assunto, o Tribunal Federal de Recursos, em seu tempo, teve a
oportunidade de se manifestar, consignando com clareza:
"RESPONSABILIDADE CIVIL. ATOS DE PERSECUÇÃO PENAL. ABSOLVIÇÃO. INDENIZAÇAO POR
DANOS. Não há responsabilidade civil do Estado, em face de danos eventualmente
causados por atos de persecução penal, quando o acusado vem a ser absolvido por
falta de prova de sua participação na infração penal, pois que, tanto a
decretação da prisão preventiva quanto a admissibilidade da denúncia repousam em
juízo provisório da prática delituosa, de todo legítimo" (TFR, AC 98794 - SP, 1a
Turma, Rel. Min. Dias Trindade, DJ data 28.02.89).
A lição da doutrina é no mesmo sentido. Como anota YUSSEF SAID CAHALI:
"Não há lugar para a ação de indenização por perdas e danos, no caso de pedido
frustrado de abertura de inquérito policial para a apuração de fato havido como
delituoso, se não ficar provada a má-fé ou malícia do requerente ('RT', vol.
295/200); só se legitima o direito à indenização de danos, 'quando da denúncia
surjam elementos positivos de improcedência grave ou leviandade inescusável'
('RT', vol. 309/178), inadmitido o pedido indenizatório se a representação não
se reveste de dolo, temeridade ou má-fé ('RT', vol. 249/133). Aliás, neste
sentido manifesta-se a doutrina. E SALVAT, cuidando da denunciação caluniosa, a
que corres-ponde o artigo 1.090, do Código Civil argentino, ressalta que, neste
caso, 'la denuncia o la querella no constituyen por sí solas el delito; para que
éste exista es necesario, como dice el texto de la ley, que la acusa-ción sea
calumniosa'" (Dano e Indenização. 1980, págs. 126/127)
Em um outro caso semelhante, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal ainda foi
mais incisivo:
"EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - INQUÉRITO POLICIAL INSTAURADO EM
VIRTUDE DE GRAVE DENÚNCIA FORMULADA POR FAMILIARES DO INDICIADO -
VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES DOS PARENTES. Diante de denúncia verossímil de
familiares, imputando grave crime ao indiciado, não pode o Delegado de Polícia
deixar de proceder à instauração do inquérito, presentes a materialidade do
delito e indícios de autoria, sob pena de responsabilizar-se criminalmente pela
omissão. O ato da autoridade, justificado pelas circunstâncias, não enseja
reparação civil, mesmo que o inquérito venha a ser posteriormente arquivado por
falta de provas. Recurso conhecido e parcialmente provido, para reduzir a verba
honorária" (Apelação Cível 50.802/98, Segunda Turma Cível, Rel. Des. George
Lopes Leite)
Com efeito, o que se deve ter em mente é que o processo nada mais é do que o
caminho legalmente previsto para apurar alguma conduta tida como ilegal ou
irregular. Não se pode, destarte, exigir indenização sempre que os fatos levados
ao conhecimento das autoridades públicas acabem por não serem comprovados, com a
absolvição dos acusados, mormente em face da insuficiente colheita de provas
durante a instrução criminal.
Que constitui poder-dever do Estado exercer a persecução criminal não resta a
menor dúvida. O Estado, assim agindo, está plenamente vinculado à satisfação dos
interesses públicos (primários, diga-se de passagem). Os indivíduos, portanto,
em nome do interesse público que gira em torno da persecução criminal, devem
suportar todos os ônus que decorrem dos atos investigatórios estatais: é plena a
utilização do brocardo jurídico in dubio pro societate. Esses ônus devem ser
suportados individualmente por aqueles que sofrem suas conseqüências, pelo só
fato de se viver em sociedade. Em outras palavras: em nome do princípio da
prevalência do interesse público sobre o privado, é justo que o indiciado ou
acusado suporte os efeitos de um ato praticado no interesse de toda sociedade;
afinal, a busca da verdade real na apuração dos crimes cometidos, sobretudo nos
crimes de ação penal pública, em que a sociedade é a principal vítima, deve
sempre prevalecer.
Nesse sentido, o Des. George Lopes Leite, do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal, em voto vencedor proferido na Apelação Cível 50.802/98, assim decidiu:
"Em caso de dano moral por de abuso de autoridade atribuído a Delegado de
Polícia, é mister analisar minuciosamente os fatos, para que se possa aferir as
ilegalidades ou arbitrariedades eventualmente praticadas, dentro daquele terreno
pantanoso, onde a suspeita do cometimento de crimes graves impõe à autoridade
policial, como dever inarredável, a necessidade de sua rigorosa apuração. Aqui
se contrapõem interesses individuais e coletivos, e desse embate devem
prevalecer, sempre, estes últimos, o que, não raro, acarreta terríveis
injustiças contra o suspeito. Esse o preço que se paga por viver em sociedade".
Mais à frente, arrematou:
"Tenho, portanto, como não caracterizados pressupostos da pretendida reparação,
pois o exercício das atribuições cometidas ao agente público, em nome do Estado,
manteve-se nos limites da lei. É lamentável o curso tomado na apuração dos
fatos, que não resultou em nada que pudesse conspurcar a honra do apelante. Mas,
indiscutivelmente, havia a necessidade de dessa apuração, já que os fatos que
chegaram ao conhecimento da autoridade policial o obrigaram a instaurar o
processo investigatório, pena de responder por crime de prevaricação".
"A doutrina autorizada de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, seguindo a lição do
Prof. OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, defende que só se configura a
responsabilidade fundada na teoria do risco-proveito, se se atentar contra a
igualdade de todos diante dos encargos públicos, em lhe atribuindo danos
anormais, acima dos comuns, inerentes à vida em socieda-de" (Curso de Direito
Administrativo. 5a ed., Malheiros, São Paulo, 1994, p. 506). Em idêntico
sentido, CARLOS ARI SUNDFELD:
"quando em pauta a responsabilidade estatal por comportamentos lícitos, mister
que o dano sofrido seja anormal (isto é, excedente das inconveniências comuns da
vida em socidade) e especial (ou seja, atinja sujeitos determinados, não as
pessoas em ge-ral)" (Fundamentos de Direito Público. 4a ed. Malheiros, São
Paulo, 2000, p. 183).
Ora, no caso dos autos, as conseqüências suportadas pelo recorrido em
decorrência do processo criminal a que respondeu foram naturalmente normais,
inerentes à vida em sociedade, principalmente por se tratar o recorrido de um
homem público, que trabalha diretamente com o Erário, estando, por conseqüência,
sujeito a controles mais rigorosos por parte da população. Seria o mesmo que
responsabilizar este Supremo Tribunal Federal por ter recebido a denúncia-crime
contra o ex-Presidente Fernando Collor de Mello, mesmo tendo sido ele,
posteriormente, absolvido por insuficiência de provas!
Em nome do interesse público, consistente na apuração da verdades dos fatos
irregulares supostamente cometidos pelo recorrido, fica patente a legitimidade
de todo o procedimento investigatório, não dando ensanchas a qualquer
indenização por danos à imagem do recorrido.
As normas constitucionais vivem em permanente estado de tensão latente. Muitas
vezes, elas parecem conflitantes, antagônicas até. Essa tensão existente entre
as normas é conseqüência da própria carga valorativa inserta na Constituição,
que, desde o seu nascedouro, incorpora, em uma sociedade pluralista, os
interesses das diversas classes componentes do Poder Constituinte Originário.
Esses interesses, como não poderia deixar de ser, em diversos momentos não se
harmonizam entre si em virtude de representarem a vontade política de classes
sociais antagônicas. Surge, então, dessa pluralidade de concepções - típica em
um "Estado Democrático de Direito" que é a fórmula política adotada por nós - um
estado permanente de conflito (colisão) entre as normas constitucionais. Como
explica MÜLLER, a Constituição é de si mesma um repositório de princípios às
vezes antagônicos e controversos, que exprimem o armistício na guerra
institucional da sociedade de classes, mas não retiram à Constituição seu teor
de heterogeneidade e contradições inerentes, visíveis até mesmo pelo aspecto
técnico na desordem e no caráter dispersivo com que se amontoam, à consideração
do hermeneuta, matéria jurídica, programas políticos, conteúdos sociais e
ideológicos, fundamentos do regime, regras materialmente transitórias embora
formalmente institucionalizadas de maneira permanente e que fazem, enfim, da
Constituição um navio que recebe e transporta todas as cargas possíveis, de
acordo com as necessidades, o método e os sentimentos da época (BONAVIDES,
Paulo. Curso de Direito Constitucional. p. 460).
Analisando o presente caso sob uma ótica constitucional, perceber-se-á que se
está diante de uma colisão de direitos fundamentais: o direito à imagem do
recorrido e o direito da sociedade de apurar os crimes. É mais uma vez o
interesse público em confronto com o interesse privado. E qual a solução para
este conflito, já que ambos os direitos possuem fundamento constitucional?
Quem nos fornece esta resposta é o jurista RONALD DWORKIN, através do que ele
denominou dimensão de peso e importância dos princípios (dimension of weights).
Na sua clássica obra Taking Rights Seriously, após expli-car que as regras
jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto, aplicada
(dimensão do tudo ou nada), o prof. da Universidade de Oxford diz que os
princípios "possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas: a
dimensão do peso ou importância. Assim, quando se entrecruzam vários princípios,
quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um
deles (...). As regras não possuem tal dimensão. Não podemos afirmar que uma
delas, no interior do sis-tema normativo, é mais importante do que outra, de
modo que, no caso de conflito entre ambas, deve prevalecer uma em virtude de seu
peso maior. Se duas regras en-tram em conflito, uma delas não é válida" (apud
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos
Tribunais, São Paulo, 1999, p. 65).
Portanto, somente diante do caso concreto será possível resolver o problema da
aparente colisão de princípios, através de um ponderação (objetiva e subjetiva)
de valores, pois, ao contrário do que ocorre com a antinomia de regras, não há,
a priori, critérios formais (meta-normas) e standards preestabelecidos para
resolvê-lo. O intérprete, no caso concreto, através de uma análise
necessariamente tópica, terá que verificar, seguindo critérios objetivos e
subjetivos , qual o valor que o ordena-mento, em seu conjunto, deseja preservar
naquela situação.
In casu, afigura-se que o ordenamento jurídico - e, sintomaticamente, a
sociedade - deseja preservar mesmo é o interesse público, decorrente da
elucidação de irregularidades envolvendo a captação e malversação da verba
pública.
A sociedade não suporta mais tanta corrupção, tanto enriquecimento pessoal e
ilícito em razão de desvio do dinheiro público. Impõe-se, portanto, o sacrifício
daqueles que, assumindo todo o risco, operam e trabalham quotidianamente com o
Erário. É justo, pois, que, em nome deste interesse de toda a sociedade, os
políticos - e todos os outros agentes públicos - submetam-se a investigações,
inquéritos e processos criminais, sempre que houver razões suficientes para
tanto. O que não pode são as irregularidades ficarem sem apuração, numa completa
institucionalização da impunidade.
Na hipótese dos autos, é certo, o recorrido foi absolvido. Mesmo assim foi
legítima a persecução penal, malgrado nada tenha ficado provado. É que a
absolvição fundamentou-se pela insuficiência de provas, o que nos leva a crer
que a verdade real, provavelmente, nunca chegará à tona. Portanto, se, de um
lado, o recorrido sofreu as conseqüências naturais e normais de uma denúncia que
se revelou in-fundada por falta de provas, de outro lado, a sociedade, ao que
tudo indica, tinha razões suficientes para proceder a investigação criminal.
Por todas essas razões, o presente Recurso Extraordinário deve ser conhecido e
provido, restabelecendo-se o direito fundamental da sociedade de, pelo menos,
tentar apurar os crimes cometidos envolvendo a verba pública, sem que se corra o
risco de se ter sempre e sempre que se indenizar o indivíduo toda vez que nada
conseguir ficar, cabalmente, provado. Seria como colocar uma espada de Dâmocles
sobre as cabeças dos agentes públicos responsáveis pelas investigações.
A título de corroboração de tudo o que foi exposto, vale colacionar pequeno
acervo jurisprudencial em prol do que foi defendido:
"RESPONSABILIDADE CIVIL. CONDENAÇÃO CRIMINAL DESCONSTITUÍDA PELA DÚVIDA. DANO
MORAL. INEXISTÊNCIA. A utilização dos meios conferidos por lei às pessoas para
realizar um interesse juridicamente tutelado não constitui abuso ou violação de
direito de que resulte a obrigação de indenizar, salvo se houver má fé, erro
palmar ou injustificável teimosia de quem os emprega" (Apelação cível 37.912,
Terceira Câmara Civil, 26 de novembro de 1991, PUBLICADO NO DJESC nº 8.395 - Pág
07 - 10/12/91, Relator: Des. Eder Graf).
"Se é injurídico conceder a alguém, impunemente, a oportunidade de acusar
maldosa ou imprudentemente uma outra pessoa, não menos jurídico é tolher aos
lesados apontar todos aqueles que, segundo sua persuasão sem malícia, possam lhe
ter praticado alguma lesão patrimonial" (RT, 179/796).
"Responsabilidade civil. Ação de indenização por alegada denunciação caluniosa.
Improcedência decretada que se confirma. Não constitui ato ilícito requerer o
empregador a instauração de inquérito policial para apurar fato delituoso
atribuído a empregado, se havia indícios de alguma consistência em tal sentido.
Não importa que, a final, tenha sido absolvido o empregado, por insuficiência de
provas, uma vez que havia base inicial para o procedimento investigatório
policial, no qual se baseou o Ministério Público para o oferecimento de
denúncia. Apelo desprovido" (AC 88.081189-7 (48.451), Quarta Câmara Civil, Rel.
Des. João José Schaefer, 5 de março de 1998).
"INDENIZAÇÃO - Responsabilidade civil - Dano moral - Reparação devida
independente de causar reflexos patrimoniais - Recurso não provido. A avaliação
do dano moral deve ser deixada ao Juiz e há de ser concedido em todos os casos,
sem indagação do que tenha sido pago a título de dano material. INDENIZAÇÃO -
Responsabilidade civil - Dano moral - Inquérito policial, arquivado por falta de
provas, imputando ao autor prática de atos delituosos - Inexistência de má-fé ou
malícia do requerente da instauração do inquérito - Peritos, ademais, que não
afastaram a possibilidade de ter o autor praticado as irregularidades apontadas
- Ação improcedente - Recurso provido. O simples pedido de abertura de
inquérito, para apuração de fato havido como delituoso, não dá lugar a ação de
indenização por perdas e danos, por parte do envolvido na investigação, desde
que não provada má-fé ou malícia do requerente" (Apelação Cível n. 196.274-1 -
São José dos Campos - Primeira Câmara Civil de Férias - TJSP - 1993).
"RESPONSABILIDADE CIVIL - DANO MORAL - COMUNICAÇÃO DE IRREGULARIDADES PRATICADAS
POR ADVOGADOS AO ÓRGÃO REPRESENTATIVO DA CLASSE - ABUSO DE DIREITO NÃO
CONFIGURADO - PLEITO REPARATÓRIO DESACOLHIDO - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - FIXAÇÃO
ADEQUADA - SENTENÇA CONFIRMADA - INSURGÊNCIAS RECURSAIS DESATENDIDAS.
Constitui-se apenas em exercício regular de um direito a comunicação por
cliente, à Ordem dos Advogados do Brasil, de fatos alegada-mente praticados pelo
causídico contratado e que imputa como irregulares. O simples exercício dessa
faculdade, ainda que a representação feita venha a ser desacolhida, não gera,
por si só, qualquer responsabilidade reparatória para o representante, se não
comprovado tenha ele atuado de forma abusiva, com dolo, má-fé ou leviandade
inescusável. Não positivados nos autos esses pressupostos subjetivos,
improsperável é a ação de reparação de danos morais movida pelos representados,
mormente quando foram eles, ainda que de forma branda, apenados pelo Conselho
Pleno da entidade classista, em conseqüência da representação feita. Nos
julgamentos de improcedência de ação indenizatória, os honorários advocatícios
da parte vencedora impõem-se fixados de acordo com a apreciação eqüitativa do
julgador, adotada a regra embutida no art. 20, § 4º do CPC. Conquanto não
arredada, com isso, a possibilidade de fixação da verba em percentual incidente
sobre o valor da causa, é de se manter o arbitramento feito quando o valor
conferido a tal título não se revele inadequado ou incondizente com a nobre
missão de advogar" (TJSC, Apelação Cível 97.003433-4, Primeira Câmara Cível,
rel. Des. Trindade dos Santos, 20 de abril de 1999).
"Quem requer a abertura de inquérito policial, para a apuração da prática de
crime de espionagem industrial, e indica os prováveis envolvidos, dando ensejo
ao início das investigações policiais e posterior oferecimento de denúncia pelo
Ministério Público, desde que não evidenciada a má-fé, age no exercício regular
de um direito. A circunstância de que tais fatos tenham sido noticiados em
jornal não constitui calúnia ou difamação a justificar pedido de indenização por
danos morais" (TJSC, ACV n. 96.001828-0, rel. Des. Eder Graf).
"RESPONSABILIDADE CIVIL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - REPRESENTAÇÃO À
AUTORIDADE POLICIAL IMPUTANDO ÀS AUTORAS A PRÁTICA DO DELITO TIPIFICADO NO ART.
172, DO CÓDIGO PENAL - OFERECIMENTO DE DENÚNCIA E POSTERIOR ABSOLVIÇÃO -
IRRELEVÂNCIA - AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ OU MALÍCIA DO REQUERENTE. O simples
requerimento de abertura de inquérito policial, para a apuração de fato tido
como delituoso, constitui direito da vítima e, salvo comprovação de ter ela
agido com dolo ou má-fé, não dá ensejo a pedido de indenização por dano moral,
mesmo que absolvidos os acusados, porque fortes eram os indícios de que
realmente haviam praticado o ato típico descrito na denúncia" (Ap. cív. n.
96.006608-0, de Blumenau, rel. Des. Eder Graf, julgada em 24.09.96).
"Não pode o réu ser responsabilizado pela prática de ato ilícito consistente em
denunciação caluniosa se a representação por ele feita contra o autor à
autoridade policial, não se reveste de dolo, temeridade ou má-fé" ("RT", vol.
249/133).
"O simples pedido de abertura de inquérito, para apuração de fato havido como
delituoso, não dá lugar a ação de indenização por perdas e danos, por parte do
envolvido na investigação, desde que não provada má-fé ou malícia do requerente"
("RT", vol. 290/199).
"Requerer a abertura de inquérito policial para apuração de crime de ação
pública constitui direito da vítima" ("RT", vol. 475/87).
É preciso mais? Cremos que não!
Em conclusão final: a ausência da responsabilidade civil do Estado, no presente
caso, por todas as razões expostas, é irrefutável e esférica, isto é, pode ser
vislumbrada de qualquer ângulo em que se ponha o operador do direto. Este sim
deve ser o entendimento. Os jul-gados acima transcritos levam a esta conclusão.
DOS PEDIDOS
Isto posto, espera o Estado-recorrente que seja o presente Recurso
Extraordinário conhecido e provido, decretando-se a total IMPROCEDÊNCIA da ação
de reparação de danos aforada pelo recorrido, condenando-o nas custas
processuais, e que seja, conseqüentemente, revertido o ônus da sucumbência.
Nesses Termos,
Pede Deferimento.
[Local], [dia] de [mês] de [ano].
[Assinatura]