Ação civil pública promovida pelo Ministério Público, a fim de retirar do ar programa de televisão anti-ético.
EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ..... VARA CÍVEL DA COMARCA DE ....., ESTADO
DO .....
O Ministério Público do Estado de ...., por meio do Promotor de Justiça
infra-firmado, com atuação junto à .... Promotoria de Justiça da Cidadania da
Capital, vem propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
em face de
....., pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ sob o n.º ....., com
sede na Rua ....., n.º ....., Bairro ......, Cidade ....., Estado ....., CEP
....., representada neste ato por seu (sua) sócio(a) gerente Sr. (a). .....,
brasileiro (a), (estado civil), profissional da área de ....., portador (a) do
CIRG nº ..... e do CPF n.º ..... e ....., brasileiro (a), (estado civil),
profissional da área de ....., portador (a) do CIRG n.º ..... e do CPF n.º
....., residente e domiciliado (a) na Rua ....., n.º ....., Bairro ....., Cidade
....., Estado ....., pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos.
DOS FATOS
O acionado ........, o ".......", vem construindo nos meios eletrônicos de
comunicação uma carreira ascendente, iniciada, até onde registrem os
noticiários, com o programa "......", exibido pelo "......", Canal ...., típico
de notícias policiais e matérias correlatas, vindo depois para a ........... de
Televisão, onde protagonizou dois outros programas, ou seja, o "........" e o
".........", com os quais manteve-se no ar até o mês de ........ do ano em
curso, quando foi contratado pelo ......., onde encabeça unicamente o "......",
diário e levado ao ar sempre às ...h:...m.
Pode-se dizer que um estilo envolve sempre os produtos de mídia nos quais o
referido apresentador pontifica, vale dizer, uma fórmula o acompanha desde que
passou a ser reconhecido, a qual se identifica, em verdade, com um culto ao cru,
ao rasteiro, ao chulo e ao violento, que são sempre destacados elementos de sua
gramática comunicativa, responsável pela apreensão da atenção do telespectador
pelo veio emocional e cáustico dos "dramas da vida", não só objeto de sua
narrativa mas também de sua intervenção messiânica, como última instância de
julgamento, e à parte dos meios institucionais, que restam, assim como os demais
valores morais e éticos do mundo civilizado, achincalhados e postos, ademais,
sob a vergasta de um temerário e solene desprezo.
Realmente, toda arquitetura e estética dos espetáculos conduzidos pelo aludido
apresentador tem estrutura peculiar, assentada no insólito, no ridículo e no
agressivo, numa fusão explosiva dos modelos das já esquecidas "lutas - livres"
com o "Povo na Tevê", resultando disso um conteúdo que não forma, não informa e,
antes, deseduca, criando um ambiente de "despromoção humana", no qual o aturdido
espectador sorve talagadas de mensagens negadoras dos valores ético-sociais e
ingressa, pelas mãos de "....." - sempre a estrela principal - no universo
apedêutico de suas mensagens setenciosas. Dessa maneira, ora a tela se enche com
as mutilações físicas de alguma criança ou adulto, com "takes" de não se perder
nesga de detalhe, expondo-se cada qual como "avis rara" de um zoológico virtual,
ora nela se engalfinham pessoas simples, paupérrimas, doentes, carentes,
desafetadas, seja por um desencontro familiar, seja por uma pequena dívida,
seja, ainda, por questiúnculas de vizinhança, sempre, vale dizer, como ápice de
uma altercação verbal em que expressões de calão são utilizadas à larga. A
legião de mutilados docilmente se submete, ciente de que paga o preço de uma
esperança de tratamento ou cura, topando a ridicularia apenas por isso, ciente
de que caso se abstenha e não sirva à elevação dos índices do IBOPE o lugar
comum de suas dores subsistirá, aguilhoada pelo pendular destino da dependência
da omissão dos serviços de saúde - "......." - ou do índice de interesse
comercial em seu aleijão. Entrega-se, ademais, a multidão carente, expondo a
intimidade de seus conflitos em permuta de uma solução arbitrada pelo totem
eletrônico desta pós-modernidade, gerador da única realidade válida e
legitimante destes tempos, a tevê, 'instituição' capaz de gerar uma realidade
idêntica entre ricos, pobres e remediados, porque os permeia a todos num
aldeamento virtual.
Falando nisso, por exemplo, e apenas para mencionar alguns episódios da série
nefanda desse "quisto da tevê brasileira", no último dia ..... de ......., em
horário nobre, pretextando informar seus espectadores, o apresentador levou ao
ar uma grotesca 'matéria' sobre o assassinato de uma garota de programas,
acontecido na cidade de ........, no qual a vítima foi arrastada por uma
caminhonete ao que tudo parece indicar - ou uma van, pondo na tela seu corpo
mutilado e retalhado, no local e no IML, mostrando-o sob todos os ângulos, sobre
o qual, e com visível preocupação de apenas somar pontos no IBOPE, encenou um
discurso furibundo contra os matadores, arrogando-se o direito a ser a última
tábua de salvação da família da vítima e testemunhas do evento, tudo de modo a
produzir, enfim, uma "mexicanização" patética de uma tragédia real e abominável
- sem dúvida -, mas sem respeito, quer ao cadáver, quer à família da vítima e
tributando apenas reverência ao ascendente principal de sua teogonia própria,
qual seja, o lucro com os índices de medição de audiência.
E assim orientado, de fato, sua preocupação é trazer à lume desavenças, intrigas
familiares, tapas, chutes e pontapés. Na última semana, em conformidade com as
fitas gravadas que seguem com a presente, no palco do programa desfilaram os
casos de pessoas que se desavinham por conta de uma quizila na venda e uso de
telefones, cuja discussão se iniciou com xingamentos recíprocos e exposição dos
contendores à uma espécie de injúria pública, culminando, depois, com um
alastrado corpo a corpo no qual o próprio '...........' acabou envolvido; na
mesma semana, depois de uma anã que ali compareceu para 'tirar a roupa para todo
Brasil' um casal apareceu para resolver uma pendenga que tinha com a sogra, quem
pretendia permanecer com seus filhos - netos dela -, iniciando-se em seguida uma
'forte discussão' com ofensas verbais onde expressões inenarráveis vêm ao ar
seguidas, é claro, de sopapos, beliscões, chutes, tudo ao som de uma platéia
fixa, que ordenadamente grita - como na arena romana - "porrada!...,porrada!",
ao que tudo indica orquestradamente, como que dando cumprimento a um roteiro. A
cena é de lastimar, saindo a mulher carregada por um "bruta - montes", que junto
a outro, permanecem sempre em cena como se fossem "seguranças". Aliás, que a
violência ali seja emblemática não se discute, a começar pelo fato de o
apresentador manter junto de si, permanentemente, um 'cacetete', que, afinal, se
inclui no "lay out" do símbolo utilizado para a publicidade.
Bizarria, com efeito, é o quanto não falta, e, para opróbrio dos espectadores, à
certa altura o personagem central refere-se à sua banda de palco como uma
autêntica "banda de zona", apontando parte do cenário como típico de um "puteiro",
em mais uma auto-infamante manifestação apelativa. Quando não, manda pôr no ar a
foto de alguém, que teria abandonado a mulher, dando-lhe nome e qualificação, a
quem se dirige, sem saber bem qual o caso e seus contornos, espicaçando,
acoimando-o "covarde", dentre outras ofensas.
O clima, portanto, é daqueles sempre suscitados pelo estilo "programa verdade",
cuja origem, por sinal, se deu no exterior, carcomendo as tradições culturais de
países como a Itália, a Inglaterra, os EUA, de onde foi importado como um dos
chamados "enlatados" que no cone Sul ainda se come frio após as rejeições sadias
do hemisfério norte. No Brasil, particularmente, trata-se de fórmula requentada
da versão 'anos setenta' do "Homem do Sapato Branco", dentre outros do gênero,
cuja pretensão sempre presente - e sublinhada - é a demonstrar a "realidade nua
e crua" das ruas e dos brasileiros.
Se fosse assim, sabe-se, já seria afrontoso, mas o pior é que a "realidade",
conforme tem-se descoberto, é somente um pretexto, porque em verdade a imprensa
crítica vem alumbrando os bastidores da produção do dito programa televisivo, de
onde extraiu o embuste como método aparente de trabalho, a farsa como fórmula
principal de atuação. Fala-se da reportagem da "........", publicada em data de
.... de ......., p. p., na qual vieram à tona os casos de ......., ........,
...... e ......, cada qual narrando uma história de aventura teatral, por conta
da qual, e em troco de R$ ......., foram exibidos no tal programa encenando
histórias falsas, auto-deprimentes, passando cada qual por um papel aviltante,
de falso marido traído a falso amante, os quais narraram, para a imprensa e para
o subscritor, terem sido convencidos apenas pelo dinheiro e sem consciência
exata da dinâmica na qual se envolveriam, recebendo apenas a orientação no
sentido de uma vez no palco tornarem-se violentos, hostilizarem ao máximo os
oponentes, agredindo-os mesmo, sem qualquer reserva, a fim de convencerem a
todos da veracidade da cena.
Foram recrutados, todos, nos ambientes mais simplórios da periferia,
submeteram-se, e depois amargaram, como ocorre até hoje, as conseqüências da
aparição, que lhes agregou a imagem ali encenada, com todos os incômodos
posteriores presumíveis. Outros tantos casos estão sendo trazidos e colacionados
pela imprensa no dia-a-dia, revelando o embuste e, além do mais, o abuso da
boa-fé do público. Como se tudo, ainda que verdadeiro, já não fosse
recriminável, a adição da farsa e ausência de escrúpulo apenas reforça a idéia
insubstituível que se faz a seu respeito, ou seja, tudo ali se topa por
dinheiro, nada obstante a honra, a dignidade humana e o respeito à pessoa seja a
tônica do discurso contraditório do apresentador.
O fato que aqui se discute, realmente, é da maior importância. Um país como este
tem peculiaridades que não podem ser ignoradas, a principal delas, aliás,
dizendo respeito ao aspecto de que 60% (sessenta por cento) de sua população não
tem outra fonte de informação que não seja a tevê, razão pela qual, tal como
afirmado pelo jornalista .........., diretor da revista "........", importe
extraordinariamente que não se fale somente em um direito à informação, mas sim
em um "direito à informação qualificada" ("O Direito à Informação Qualificada",
inserto em "Informação e Poder", Ed. Record, ed. 1994, pg. 95), sob pena de que
as coisas prossigam na mídia como anteriormente - e de maneira assumida - se
expressava "Chacrinha", ou seja, mais inclinadas à confusão do que à explicação.
A importância da mídia nos dias de hoje e seu inesgotável poder de influência,
como se sabe, tem sido objeto de estudos e preocupações freqüentes, tendo-se
colhido em debate havido em reunião da Sociedade Brasileira Para o Progresso da
Ciência uma significativa manifestação do internacionalmente respeitado
sociólogo brasileiro, Otávio Ianni, segundo quem "com essa mídia não se constrói
uma nação" (op. Cit., art. José Monserrat), frase na qual se sintetiza,
realmente, um justificado receio acerca de seu vultoso poder, inclusive
destrutivo, como não se ignora. A propósito, o homem de mídia e talvez o maior
publicitário do país, Washington Olivetto, não desconhece o alto poder de
influência da mídia, afirmando que nem mesmo produtos de reconhecida idoneidade
nacional resistiriam a quinze minutos de informação negativa de determinados
jornais televisivos em rede nacional (cit. p/ José Paulo Cavalcanti em "E Lord
Jones Morreu. Discurso Por Controles Democráticos dos Meios de Comunicação",
artigo publicado na obra "Informação e Poder", pg. 58).
José Paulo Cavalcanti, aliás, na condição de ex-secretário Geral do Ministério
da Justiça, analisando a mídia e seu poder sentencia que "os meios de
comunicação representam a melhor garantia de ampla expressão do pensamento e de
fiscalização das ações públicas. Mas, à margem dessa matriz emancipadora, em que
a informação funciona como instrumento de liberdade, temos também as implicações
de suas disfunções, onde ela resta à disposição dos grandes interesses; de
alguma maneira se poderia dizer que, assim como não há democracia sem meios de
comunicação livres, igualmente não há democracia com meios de informação livres,
sem qualquer espécie de limite" (op. Cit. pg. 31). Realmente, a ausência
absoluta de formas de controle - inconcussamente distintas de censura - pode
permitir um concubinato deletério entre abjeção e o poder econômico, ou entre a
amoralidade e o poder político, num suculento e nefasto banquete em louvor da
perpetuação da ignorância, e tudo sob uma capa equívoca de manifestação da
liberdade de expressão, tendente a confirmar o quanto com tanta propriedade já
salientou Eduardo Galeano, sobre serem estas circunstâncias aquelas em que os
fins não justificam os meios, porque os meios - de comunicação - passam a
justificar os fins (cit. p/ José Paulo Cavalcante, op. Cit.).
A verdade inolvidável, realmente, é a de que a sociedade acaba se moldando por
influência dos meios de comunicação e a reprodução exaustiva de seus clichês,
seus modelos, de tal maneira que sua imagem especular, em lugar de refletir dada
realidade acaba por impor aquela nela exposta, num jogo interativo em que a
passividade do espectador pode passar a ser cultivada de modo temerário. Em
reflexão sobre o tema, aliás, o Prof. Cristóvam Buarque, ex-reitor da UNB,
revelou apreensão relativa à possibilidade de que a população brasileira tenha
realçada uma extensa camada dos que ele classifica como 'metabólicos' - em
contraposição aos que ele chama 'parabólicos' -, ou seja, aquela repleta de
indivíduos que, à falta de programação de qualidade, terão uma televisão como
extensão de seus braços, vale dizer, que não os ensinará a pensar e, ao
contrário, "levará a não pensar" ("Parabólicos e Metabólicos", artigo inserto em
"Informação e Poder", op. Cit., pg. 75). Por essa razão, de fato, os meios de
comunicação de massa ocupam os estudiosos contemporâneos, especialmente aqueles
que tributam ao seu uso democrático e sadio uma preocupação edificante, pois é
impossível não subscrever a idéia de Mc Luhan sobre ter-se tornado a própria
informação hoje um bem econômico de primeira grandeza, o que levou Umberto Eco,
por exemplo, a afirmar que na atualidade somente países fascistas e
subdesenvolvidos ainda carecem de generais e tanques para a escalada do Poder,
bastando para uma revolução, com certeza, uma cadeia de rádio e televisão,
sofrendo o cidadão hoje um permanente chamado à lassidão mental, de tal modo que
os meios de comunicação de massa incontidos timbram como inexcedível sua
asserção: "quando triunfam os meios de massa, o homem morre" (Citados em "A
imprensa, a proteção à intimidade e o processo penal", de J.J. Calmon de Passos,
publicado na Revista Forense, n.o 324).
Do exposto, como visto, resulta absolutamente claro que a questão da mídia, seu
poder de informação e a sociedade de massas tem repercussão social
irretorquível, de maneira a ser determinante numa sociedade democrática que
sobre ela se instalem discussões, mesmo porque as conseqüências da omissão nesse
caso são de nocividade incalculável. A propósito, conforme publicação do jornal
"......", edição de .../... p.p., professores e especialistas debateram tais
questões, valendo realçar a manifestação do Prof. Ciro de Figueiredo, diretor do
Colégio Friburgo e presidente do Grupo - Associação de Escolas de São Paulo, no
sentido de que, com efeito, a tevê não apenas reproduz o mundo mas o cria
também, reputando por isso extremamente importante a discussão sobre tema. Na
mesma ocasião, ainda, Beth Carmona, ex-diretora de programação da TV Cultura,
não hesitou em realçar, pelas mesmas razões, a necessidade de meios de controle
da televisão, até por ser uma concessão pública. Vai daí que os fatos narrados
nesta prefacial sobre o programa televisivo em foco ganham importância, sim, na
medida que representam um ponto de vulnerabilidade a ser tratado sem peias ou
preconceitos e sem, também, refratariedade de pantomimas liberais, sempre a
serviço de intenções subreptícias das mais recrimináveis.
Calha observar que a sociedade brasileira, inegavelmente, é caracterizada pelo
processo estrutural da negação da identidade social e política dos sujeitos
históricos, destacando-se nessa circunstância a relevância o trabalho da mídia,
instando que se considere a hipótese de controle social da informação, ou
sobrevirá a manipulação via desinformação, ou seja, a informação perversamente
intencionada (Francisco de Oliveira, cit. por J.J. Calmon de Passos, op. Cit.).
DO DIREITO
"O Direito à Informação na perspectiva do emissor se configurou como poder,
tanto político quanto econômico. E quando isso ocorre o Direito se
desfuncionaliza e em lugar de servir o homem se torna instrumento de sua
dominação" ( J.J. Calmon de Passos).
O constituinte de 1988, purgando a mora histórica da sociedade brasileira,
salientou no art. 1o, da Constituição Federal, que a República Federativa do
Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito, e sobretudo sobre alguns
fundamentos especiais, dentre os quais hão de ser ressaltados a cidadania e a
dignidade da pessoa humana. Pode-se dizer, conseguintemente, que são em verdade
princípios fundamentais do Estado brasileiro, indispensáveis, como se sabe, para
a consecução seus fins principais, dentre os quais se insere, em conformidade
com o art. 3o, da Constituição Federal, aquele de se construir uma sociedade
livre, justa e solidária. Explicitando o significado da expressão conceitual
"cidadania", o Prof. José Afonso da Silva afirma que ela se encontra no texto em
seu sentido mais amplo, referindo-se aos direitos políticos e também implicando
no reconhecimento da integração das pessoas na sociedade estatal, com estreita
conexão, ainda mais, com o conceito de dignidade humana e com os objetivos da
educação como base e meta essencial do regime democrático.
Ademais disso, e agora esclarecendo o sentido do conceito de "dignidade humana",
refere-se ele estar essa expressão colocada como significante de um valor
supremo, que atrai todos os direitos fundamentais do homem. Com efeito, há que
se ter presente, em ambos os casos, a idéia de que tanto a cidadania como a
dignidade da pessoa humana ascendem à qualificação de preceitos fundamentais da
ordem jurídica brasileira, na qual hão de repercutir como fatores condicionantes
de sua interpretação e aplicação, em caráter permanente . Nessa perspectiva,
como corretamente lecionam os Profs. Luiz Alberto Davi Araújo e Vidal Serrano
Nunes Jr.: "Os princípios, portanto, determinam a regra que deverá ser aplicada
pelo intérprete, demonstrando um caminho a seguir. Podemos falar na existência
de uma hierarquia interna dentro das normas constitucionais, ficando os
princípios em um plano superior, exatamente pelo caráter de regra estrutural que
apresentam".
É que, como afirmado pela douta Profa. Carmem Lúcia Antunes Rocha, os princípios
tem mesmo uma dimensão axiológica e refletem uma doutrina, um posicionamento
político, orientando, assim, a evolução da ordem jurídica em sua dinâmica.
Tendo em conta esses fatores, realmente, a ordem jurídica contempla
principalmente as disposições do art. 5º, da Constituição Federal, que prevê e
asseguram os direitos fundamentais da pessoa humana, as quais, como resulta
claro, são dotadas de aplicação imediata, a fim de que os garantam efetivamente,
quer quanto a violações, quer quanto a ameaça, tal como previsto em seu inciso
XXXV. Os direitos fundamentais, dessa maneira, compreendidos como "situações
jurídicas definidas no direito positivo em prol da dignidade, igualdade e
liberdade da pessoa humana" são regulados por normas constitucionais de eficácia
plena, sem dúvida, sejam os individuais, sejam os coletivos, incorporados que
estão, definitivamente ao direito positivo.
Em quaisquer relações, de conseguinte, hão de ser observados, mesmo que se
esteja no campo daquelas de caráter privado. Nessa área, aliás, crescem as
repercussões dos chamados direitos da personalidade, que se materializam como
uma transposição dos direitos fundamentais nas relações privadas, cuja
importância pode ser medida por sua constitucionalização, como é possível
entrever no inciso X, da Constituição Federal de 1988. No âmbito do próprio
direito civil, portanto, a proteção à pessoa vem se firmando como uma
necessidade premente, chamando a atenção para isso, por exemplo, o Prof.
Francisco Amaral, para quem o civilista hoje tem de apagar da memória o modelo
do intelectual em defesa da burguesia ou de uma classe, mas apegar-se a uma
forma de atuação crítica, voltada à defesa da pessoa e de seus direitos
inalienáveis. Enfim, trata-se de dar ao Direito tratos antropocêntricos,
distinguindo-se no campo do Direito Privado já o fenômeno da "repersonalização",
como refere Erouths Cortiano Júnior , estabelecendo-se também nessa área a idéia
de que o Direito "não está apenas centrado funcionalmente em torno do conceito
de pessoa, mas também seu sentido e sua finalidade são a proteção da pessoa", no
dizer de Aguirre Y Aldaz, conforme citação do ilustre autor paranaense. Tratando
da mesma matéria, aliás, o Prof. Gustavo Tepedino oportunamente anota: "Com
efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República,
associado ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização,
e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do par. 2º do
art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que
não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior,
configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana,
tomada por valor máximo pelo ordenamento".
Dessa maneira, como esclarece Celina Bodin de Moraes, a ordem jurídica opera no
sentido da proteção integral da pessoa humana, independentemente da antiquada
dicotomização direito público e direito privado, firmando a matriz normativa da
promoção da dignidade humana, que passa a operar como limite além do qual resta
apenas a "ilicitude".
Na esteira do exposto, com certeza é que se deve realizar uma interpretação do
texto constitucional no concernente à comunicação social, ou seja, o conteúdo
dos arts. 220 e 221. Estes, de fato, se estabelecem a liberdade de expressão,
criação, pensamento e informação, não admitem a indenidade quanto a controles,
na medida em que submetem seu exercício a limites impostos pela própria Carta
Constitucional. Anunciados estão, aliás, os lindes entre os quais os exercícios
dessas liberdades devem se suster, como afinal se verifica do disposto no art.
221, IV, ou seja, o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da
família. Essa opinião, a propósito, é manifestada também pelo sempre inolvidável
Prof. José Carlos Barbosa Moreira, para quem, realmente, o art. 220, da
Constituição Federal, depois de estabelecer que a manifestação é livre e que não
há censura, estabeleceu também que há necessidade de meios legais para a
proteção à pessoa, à família e os defendam dos programas que contrariem as
normas regulamentares.
A propósito, também é importante colacionar a relevantíssima opinião do não
menos expressivo Prof. Rodolfo de Camargo Mancuso, para quem há efetivamente um
direito coletivo à uma programação de qualidade, que se encontra intrinsecamente
ligada, aliás, ao respeito aos valores mencionados éticos e morais referidos
pelo constituinte, entendendo ele, inclusive, que a regra traçada pelo art. 221,
da C.F. é de eficácia plena, sem que se cogite de dificuldades quanto à
interpretação do que sejam em substância os valores aludidos porque "seria
preocupante a situação de um povo ou uma nação que não o soubesse". Nessa medida
ele enfatiza em suas considerações que o próprio texto constitucional, no que
diz respeito ao art. 225, estabelece um direito ao meio-ambiente sadio e
equilibrado, e também o direito à qualidade de vida, a qual, segundo entende,
abarca sem dúvida o "direito a um entretenimento saudável, propiciado por uma
boa programação televisiva. Não é à toa, pois não, que o art. 221, I da C.F.
impõe que a programação das emissoras deverá dar primazia a finalidades
educativas, artísticas, culturais e informativas. Daí porque conclui o
prestigiado autor, que: "Esse mínimo ético e esse padrão básico de qualidade não
configuram mera recomendação do constituinte, se não que a todo cidadão
brasileiro fica assegurado o interesse difuso, ou, se quiser, o direito
subjetivo público ou ainda a liberdade pública de usufruir de uma programação
televisiva nos moldes do que se contém nos dispositivos constitucionais antes
citados".
Aliás, voltando ao Prof. José Carlos Barbosa Moreira , ele lembra que não há
liberdade absoluta, esclarece que "o ordenamento jurídico constitui, tem que
constituir sempre, a expressão de um compromisso entre solicitações divergentes
de proteção a valores suscetíveis de contrapor-se uns aos outros". Na esteira
desse ponto de partida ele não somente reafirma a existência de um direito
coletivo à programação de qualidade, como ainda anota que o órgão judicial tem,
sim, até a possibilidade de proibir a exibição de programas afrontosos aos
termos do art. 221, da Constituição Federal, uma vez bem interpretado o art. 11,
da Lei da Ação Civil Pública, salientando, ademais disso, que nem mesmo o
fenômeno da bipolaridade, vale dizer, o confronto com o virtual interesse
coletivo daqueles que cultivam a "grossura, o voyeurismo" pode constituir
obstáculo à tutela jurisdicional, porquanto o dispositivo constitucional sob
exame justifica, por sua importância e preponderância, o sacrifício de qualquer
outro interesse contraposto àquele por ele fixado.
Os doutrinadores mencionados têm, sim, razão, na medida em que hoje já se cogita
dos chamados direitos fundamentais de quarta geração, retratados pelo Prof.
Paulo Bonavides aqueles relativos à democracia, ao pluralismo e à participação,
que compreendem um direito à informação correta e a uma vivência indene à
contaminação da mídia manipuladora, enfim, um direito à qualidade de vida em
toda sua extensão, da qual não se exclui, de fato, o direito a um entretenimento
saudável na programação da mídia eletrônica.
DOS PEDIDOS
Ante o exposto, requer-se à Vossa Excelência que emane uma ordem a fim de que se
retire o programa do apresentador ..... do ar.
Requer ainda a citação das rés a fim de, querendo, apresentar defesa no prazo
legal.
Protesta provar o alegado por meio de todos os tipos de prova em direito
admitidas.
Dá-se à causa o valor de R$ .....
Nesses Termos,
Pede Deferimento.
[Local], [dia] de [mês] de [ano].
[Assinatura]