Ação civil pública em face de seguradora de saúde que visa prestação de serviços com exclusividade por parte de médicos.
EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ..... VARA CÍVEL DA COMARCA DE ....., ESTADO
DO .....
autos nº .....
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE ....., representado pelo Promotor de Justiça
que esta subscreve, no uso de suas atribuições legais, com fundamento nos
artigos 1º, II, IV e V, e 5º, da Lei 7.347/85, 129, III, da Constituição
Federal, 94, inciso V, da Constituição Estadual, 25, da Lei 8.625/93, e nas
disposições das Leis 8.078/90, 8.137/90, 8.884/94 e 9.656/98, vem perante esse
douto Juízo propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO LIMINAR
em face de
....., seguradora de saúde, com sede na Rua ....., n.º ....., Bairro .....,
Cidade ....., Estado ....., representada por .........., brasileiro (a), (estado
civil), profissional da área de ....., portador (a) do CIRG n.º ..... e do CPF
n.º ....., podendo ser encontrado na Rua ....., n.º ....., Bairro ....., Cidade
....., Estado ....., pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos.
DOS FATOS
A ré se utiliza como estratégia de atuação a filosofia do impedimento à
dupla-militância, ao enunciar que cada médico filiado, ou mesmo qualquer
seguradora que a ela venha se filar, tem a obrigação genérica de exercer suas
atividades profissionais exclusivamente a ela, ficando absolutamente impedido de
trabalhar para outro convênio ou prestar serviços a outras seguradoras de saúde.
Claro, portanto, que essas disposições estatutárias cerceiam a liberdade de
exercício da profissão do médico - que se vê na contingência de se tornar
médico, premido pela possibilidade de perda de clientela pessoal em virtude da
atividade monopolista da seguradora - e ofendem aos princípios gerais da
atividade econômica previstos na Constituição Federal.
Paradoxal a represália cometida pela ré, mormente porque, segundo disposição de
seu Estatuto, os médicos executarão os serviços que lhes forem concedidos pela
Seguradora, exclusivamente nos seus estabelecimentos individuais, observando o
princípio da livre oportunidade para todos os associados, além de observar
estritamente o Código de Ética Profissional.
Em somatória, o Código de Ética Médica (documento acostado) determina que são
princípios fundamentais o exercício da medicina sem discriminação de qualquer
natureza, vedado o seu exercício 'comercial' e a exploração por terceiros com
objetivo de lucro (artigos 1º, 9º e 10 do referido 'código' - acostado a fls.
185 - numeração pé da página).
Vê-se, pois, que o objetivo da ré é impedir a livre concorrência e monopolizar o
mercado de planos de saúde em seu exclusivo benefício.
DO DIREITO
Dúvida não existe que o Estatuto Social da ré, tocante aos dispositivos
enfocados, além de cercear a liberdade do exercício de profissão do médico
consoante anterior transcrição do Estatuto de Ética Médica, ofende aos
Princípios Gerais da Atividade Econômica, estampados na Constituição.
Preceitua o artigo 170 da Constituição Federal que A ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios:
IV - da livre concorrência;
V - defesa do consumidor, e
VIII - busca do pleno emprego.
A prática permitida pelo estatuto da ré afronta, também, o artigo 173, § 4º, da
Constituição, que preceitua: A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise
a dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e o aumento arbitrário
dos lucros.
Diante disso, as referidas disposições estatutárias configuram abuso do poder
econômico e infringem a ordem econômica, conforme preceitua o art. 20 da Lei
8.884/94, porquanto limitam a liberdade de iniciativa e aniquilam a concorrência
na busca insaciável de absorção do mercado de planos de saúde privados.
O artigo 20 da Lei 8.884/94 preceitua que constituem infração da ordem
econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados
que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não
sejam alcançados:
I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a
livre iniciativa;
II - dominar mercado relevante de bens ou serviços.
Infere-se, ainda, da conduta da ré, a perfeita adequação ao que foi previsto
pelo legislador no artigo 21, incisos IV e V, da Lei 8.884/94, verbis:
"Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem
hipótese prevista no artigo 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem
econômica:
(...)
IV - limitar ou impedir o acesso de novas seguradoras no mercado;
V - criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de
seguradora concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou
serviços."
Se não bastasse, a Lei 9.656, de 03 de junho de 1998, que dispõe sobre planos e
seguros privados de assistência à saúde, dirimiu quaisquer dúvidas sobre o
assunto, contemplando, literalmente, em seu texto, a vedação de operadoras de
planos de saúde impor contratos de exclusividade ou de restrição à atividade
profissional.
Referido diploma legislativo, em seu artigo 18, inciso III, dispõe que:
"Artigo 18º - A aceitação, por parte de qualquer prestador de serviço ou
profissional de saúde, da condição de contrato ou credenciado de uma operadora
de planos de saúde ou de seguros privados de assistência à saúde, impõe-lhe as
seguintes obrigações e direitos:
(...)
III - a manutenção de relacionamento de contratação ou credenciamento com número
ILIMITADO de operadoras de planos ou seguros privados de assistência à saúde,
sendo expressamente vedado à operadoras impor contratos de exclusividade ou de
restrição à atividade profissional."
A recente Medida Provisória 1908-18, de 24 de setembro de 1999, NÃO alterou
estes dispositivos (artigo 6º deste esdrúxulo, mal usado e repugnante
instrumento legal de que se vale o Poder Executivo para ditar normas, à moda dos
malfadados atos institucionais).
A ré invoca a seu favor, o disposto no artigo 29, § 4º, da Lei 5.764/71 ( ...não
poderão ingressar no quadro das seguradoras os agentes do comércio e empresários
que operem no mesmo campo econômico da sociedade... ) , para justificar a sua
prática de imposição de exclusividade dos médicos. Esquece-se a ré, contudo, que
os médicos NÃO são comerciantes nem empresários. Por outro lado, o referido
artigo visou a impedir que o médico venha a se utilizar da Seguradora ou
conduzi-la, de forma a tirar vantagens para o seu negócio paralelo.
Assim, somente por exemplo, o dono de um Hospital ainda que médico, não pode
ingressar em uma Seguradora de Trabalho médico, porque se trata de pessoa que
está atuando no mesmo campo econômico da Seguradora, sendo possível que, nela,
procure conduzi-la contrariamente aos objetivos sociais da Seguradora, e de
forma vantajosa para o seu Hospital, fazendo com que, por exemplo, a Seguradora
inclua tal Hospital em seu quadro de atendimento, por um preço superior.
Outro exemplo, é o dono de uma Construtora que, por atuar no mesmo campo
econômico de uma Seguradora Habitacional, não pode se tornar médico desta, pelo
risco de, como médico, vir a fazer com que a Seguradora se desenvolva de forma
vantajosa para a sua Construtora, contratando-a, por exemplo, apesar de
existirem outras Construtoras melhores e mais baratas no mercado.
Quando, no entanto, um médico passa a atender por outros planos de saúde, e não
apenas Seguradora, não se cria risco nenhum de desvirtuamento dos objetivos da
Seguradora, e nem de utilização dela para obtenção de vantagens para um outro
negócio do Médico, não havendo que se falar, portanto, em afronta ao referido
artigo 29, § 4º, da Lei 5.764/71.
Pelo contrário, a não exclusividade dos médicos permitirá que a Seguradora se
desenvolva sem o aniquilamento de outros interesses relevantes da sociedade,
dentre os quais se avulta o interesse do consumidor, garantido, tanto quanto a
Seguradora, por expressas normas constitucionais (artigo. 5º, XXXII, e 170, V,
da Constituição Federal). A Seguradora poderá assim, inclusive, cumprir a sua
função social, e não apenas atender aos interesses corporativistas de seus
Dirigentes.
Convém lembrar que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação, sendo certo que são de relevância pública
as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da
Lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser
feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou
jurídica de direito privado (artigos 196 e 197 da Constituição, transcritos
ipsis literis, com o grifado do subscritor).
É bem verdade que o art. 5º, XVIII, da Constituição Federal, concede autonomia
às seguradoras e associações privadas em geral. Não é por isso, todavia, que o
Judiciário está impedido de coibir eventual ilegalidade advinda do ato de gestão
dessas entidades, máxime se considerado o inciso XXXV, do dispositivo supremo
suso declinado. E, na espécie, a exigência da ré de o médico se manter filiado a
ela, exclusivamente, pode, ao primeiro exame, vir em prejuízo da comunidade,
segundo, aliás, externado nos traslado de fls. 595 e seguintes. Em favor desse
entendimento, de se lembrar, ainda, a notória dependência econômica da maioria
dos médicos em relação a convênio ou seguradora de saúde bem estruturada, como
parece ser a ora recorrente. Vai daí que não se mostra desarrazoada a assertiva
do agravado, atinente ao abuso do poder econômico, embora, alfim e à luz das
provas, deva a questão merecer exame mais acurado.
DOS PEDIDOS
Pelo exposto, o Ministério Público invoca a tutela jurisdicional requerendo a
integral procedência da pretensão deduzida nesta ação civil pública, para o fim
de:
a) reconhecer e declarar a abusividade e, ainda, decretar a nulidade das
disposições contidas nos artigos 11, letra "a", e 13, do estatuto social da ré ,
fazendo cessar, por conseguinte, sua eficácia, por impedirem a livre
concorrência, restringirem a liberdade de exercício de atividade profissional e
atentarem contra interesses do consumidor, previstos na Constituição Federal, no
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e na Lei de Planos e Seguros
Privados de Assistência à Saúde (Lei 9.656/98);
b) condenar a ré, com a fixação de multa diária na hipótese de descumprimento,
que alvitra-se em valor igual ou superior a dez (10) salários mínimos diários,
como forma de desestimular a desobediência, a abster-se (obrigação de não
fazer):
b-1) de determinar o desligamento de médico;
b-2) de recusar a admissão de médico que estiver prestando serviços para outra
seguradora de saúde;
b-3) de recusar a admissão de seguradora que a ela pretender se filiar pelo
exclusivo motivo da 'exclusividade';
b-4) de determinar o desligamento de estabelecimento de saúde filiado.
Em suma, tudo o que seria feito sob o pretexto de contrariar os objetivos da
seguradora.
c) condenar a ré em obrigação de fazer, consistente em comunicar, por carta, a
todos os médicos, o teor da decisão judicial referente aos itens "a" e "b",
supra;
d) fixar multa diária pecuniária para o caso de eventual descumprimento ou
retardamento das determinações judiciais supra, ou de outras que assegurem o
resultado prático da prestação jurisdicional (artigo 461, caput, e respectivo §
5º, do Código de Processo Civil), cujo valor requer-se seja igual ou superior a
10 (dez) salários mínimos por médico atingido e para cada dia de desatendimento
a qualquer decisão judicial, a ser oportunamente recolhido ao Fundo de que trata
a Lei 7.347/85, valor este reputado mínimo e suficiente para desestimular o
descumprimento do mandamento judicial.
e) condenar a ré nas custas judiciais, revertendo o valor ao Fundo de que trata
a Lei 7.347/85.
f) presentes o fumus boni juris (farto amparo legal) e o periculum in mora
(saúde pública), e com fundamento no artigo 12 da Lei 7.347/85, bem como artigo
461, § 3º, do Código de Processo Civil, requer-se a concessão de liminar,
inaudita altera parte, independentemente de justificação prévia, para os fins
retro declinados (itens 'b', 'c' e 'd').
g) requer a citação da ré, na pessoa de seu representante legal, Dr ....., no
endereço inicialmente mencionado.
h) protesta provar o alegado por todos os meios de prova em direito admissíveis,
especialmente pela juntada de novos documentos e depoimentos de testemunhas,
cujo rol já se faz anexar adiante.
i) requer, por fim, a integral procedência da ação, com a conseqüente condenação
da ré, nos termos do pedido, impondo-lhe, em definitivo, as obrigações acima
relacionadas, com as cominações de direito, inclusive custas processuais.
Dá-se à causa o valor de R$ .....
Nesses Termos,
Pede Deferimento.
[Local], [dia] de [mês] de [ano].
[Assinatura]