O Ministério Público pleiteia o óbice de saídas do réu de estabelecimento prisional ou sua transferência para outro local.
EXMO. SR. JUIZ DE DIREITO DA ..... VARA CRIMINAL DA COMARCA DE .....
O Representante do Ministério Público que esta subscreve, utilizando-se de suas
atribuições legais, vem, perante V. Exa., nos autos do Processo Criminal,
tombado sob o nº............. e instaurado mediante Ação Penal Pública
Incondicionada, em desfavor de ............, conhecido como .................,
já qualificado, expor e requerer o que segue.
DOS FATOS
O acusado em referência foi denunciado, aos ........ dias do mês de ........ de
..........., como incurso nas penas dos arts. 121, §2º., II e IV, e 129, §1º.,
c/c art. 69, todos do Código Penal pátrio, tendo sido sua prisão preventiva
decretada, a requerimento do Ministério Público, em ..............
Diversas foram as tentativas, todas infrutíferas e com semelhante fundamentação,
de concessão de liberdade provisória ao réu, com a conseqüente revogação do
decreto preventivo.
Persistindo os motivos ensejadores da medida de constrição temporária da
liberdade do acusado, i. e., a conveniência da instrução criminal, diante da
intranqüilidade, com forte influência na idoneidade e imparcialidade dos
depoimentos dos testigos, a periculosidade do agente, com probabilidade de
reflexo malévolo na ordem pública, e, por fim, a preservação do prestígio da
instituição de direito público que integra, ou seja, a Polícia Civil (vide fls.
202 a 207), foram os pedidos de liberdade devidamente rechaçados por este MM.
Juízo, que a todo momento revelou à sociedade os verdadeiros motivos pelos quais
são dignos os magistrados a este vinculados do tratamento de "excelência", com
um trabalho que enaltece e enobrece o Poder Judiciário.
No entanto, como se pode observar, compulsando os documentos que ora são
acostados nos autos, o que desde já requer, vários depoimentos revelaram o
descumprimento da medida temporária de privação, bem como o cometimento de crime
e faltas graves pelo acusado. Estas informações, encaminhadas pelo Exmo. Sr.
Promotor da Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos de Natal,
merecerão análise mais acurada adiante, acarretando os requerimentos ao final
consignados.
Verifica-se, com uma breve leitura dos documentos ora juntados aos presentes
autos, ter sido concedido um benefício de saída temporária ao réu, do
estabelecimento em que se encontra, às quartas e domingos, durante o horário
compreendido entre as 11:00 e 17:00h., em outro processo que tramita neste MM.
Juízo.
Investigando o fundamento da concessão do benefício, aufere-se que este foi o da
desumanidade da abstinência sexual do preso, merecedor da manutenção de
encontros periódicos dessa natureza, o que deveria fazê-lo, em virtude da
ausência de parlatório no estabelecimento prisional em que se encontrava, em sua
residência, às quartas e domingos, das 11:00 até 17:00h.
DO DIREITO
1. DA ILEGALIDADE DO PRIVILÉGIO
Confrontando-se o ato citado às prescrições normativas ínsitas no Estatuto
Processual Penal pátrio e na Lei de Execução Penal, conclui-se pela flagrante
contradição existente entre a prisão decretada e o privilégio autorizado.
Salta aos olhos a ilegalidade do benefício concedido. Há uma contradição patente
entre o direito de visita externa feita pelo custodiado para fins sexuais, duas
vezes por semana, e a necessidade manifestada pelo decreto privativo da
liberdade.
Ora, se é certo que a Lei 7.210/84 incide, fazendo exsurgir direitos e deveres
para os presos provisórios, além dos definitivos, não menos correta é a
afirmação de sua aplicação na medida em que se compatibilize com a situação do
custodiado temporário, em virtude dos reconhecidos fundamentos externados na
motivação do decreto. Assim, nem todos os direitos enumerados no art. 41, da LEP,
dentre os quais o ora atacado, se incorporam ao patrimônio jurídico dos presos
provisórios; a própria lei, no artigo subseqüente, ressalta a condição
restritiva da situação destes, como se vê:
"Art. 42. Aplica-se ao preso provisório e ao submetido à medida de segurança, no
que couber, o disposto nesta Seção." (Destaque nosso)
Segundo a lei executiva penal, o benefício de saídas temporárias somente é
concebido em hipóteses especificamente enumeradas, previstas no art. 122, da Lei
7.210/84, relativas tão-somente aos condenados que cumprem pena em regime
semi-aberto. Sua extensão aos provisórios é inconcebível, como ressai JULIO
FABBRINI MIRABETE:
"Ao contrário do que ocorre com as permissões, as saídas temporárias são
restritas aos condenados que cumprem pena em regime semi-aberto. Não se admite a
medida para o preso provisório, já que está este em situação incompatível com o
benefício. Se a autoridade judicial entende necessária a custódia do preso, em
decorrência dos dados colhidos no inquérito policial ou na instrução criminal,
deve-se impedir que possa ele, sem escolta, deixar o estabelecimento prisional."
(Execução Penal. 5ª. ed., rev. e atual., São Paulo, Editora Atlas S/A, 1994, p.
305) (Destaques nossos)
Por outro lado, ainda que preenchidos os requisitos do artigo supracitado, se o
réu preso provisoriamente é reconhecidamente perigoso, como restou declarado na
fundamentação do decreto preventivo, a autorização deve ser denegada, como se
infere da análise do dispositivo imediato (art.123), cristalizado no
entendimento pretoriano que se traz à colação:
"EMENTA: PROCESSUAL PENAL - RECURSO DE AGRAVO. SAÍDAS TEMPORÁRIAS. SE O PERFIL
DO AGRAVANTE NÃO SE COMPATIBILIZA COM A PENA QUE ESTÁ A CUMPRIR, QUE SE EXIGE NO
ARTIGO 123, DA LEI DAS EXECUÇÕES PENAIS, AINDA QUE PREENCHIDO EXIGÊNCIAS LEGAIS,
O CONDENADO NÃO FAZ JUS À CONCESSÃO DE SAÍDAS TEMPORÁRIAS." (2ª. Turma Criminal
do TJDF, Rel. Des. Joazil Gardés, RAG 0000237-DF, j. 23.09.93, DJDF 10.11.93, p.
47.962)
"EMENTA: RECURSO DE AGRAVO. RÉU PRESO. AUTORIZAÇÃO PARA SAÍDA TEMPORÁRIA.
INDEFERIMENTO. NÃO PREENCHENDO O RÉU OS REQUISITOS LEGAIS PARA A CONCESSÃO DO
BENEFÍCIO DA SAÍDA TEMPORÁRIA, MANTÉM-SE A DECISÃO QUE INDEFERIU SUA PRETENSÃO
AO FUNDAMENTO DO ART.123, DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL. NEGOU-SE PROVIMENTO.
UNÂNIME." (2ª. Turma Criminal do TJDF, Rel. Des. Paulo Guilherme Vaz de Mello,
RAG 0000245-DF, j. 03.02.94, DJDF 06.04.94, p. 3.373)
A saída temporária autorizada ao acusado, ainda que tenha sido concedida baseada
na abstinência sexual prejudicial, cria, verdadeiramente, uma figura
jurídico-processual sem precedentes: a "liberdade provisória relativa", ou
ainda, a "prisão preventiva limitada".
De acordo com o Direito Processual Penal brasileiro, em relação à situação do
acusado, duas figuras podem surgir: a prisão e a liberdade. Uma é antagônica à
outra. Ou se vislumbra a necessidade da privação da liberdade, por razões que a
lei processual consagra, e não há falar-se em livramento, ou, sendo
prescindível, existe direito subjetivo público a este.
O que não se pode é, como ocorrente, persistirem duas situações de incongruência
ululante: a de preso provisório e a de livre temporário. A necessidade é a
palavra-chave para a existência de uma ou outra figura jurídica. E esta foi
muito bem demonstrada no ato judicial determinador da medida.
No entanto, as saídas temporárias autorizadas ao preso provisório em referência,
além de estarem sob a órbita da ilegalidade desde o seu nascedouro, têm sido
desrespeitadas com freqüência nos limites estabelecidos. É suficiente a leitura
da documentação ora acostada para verificar-se o descumprimento do horário e do
fim a que se destinou a concessão, com idas freqüentes a bares, intimidação e
ameaça às testemunhas, sob porte de arma de fogo.
Não bastasse a fruição de um privilégio ilegalmente concedido, outras infrações
são cometidas, por um preso retirado temporariamente do seio social em defesa
deste, numa situação ocasionadora de grande descrédito na Justiça, na proteção
dos jurisdicionados.
A cassação da autorização das saídas é ato indeclinável, imprescindível ao
restabelecimento da ordem jurídica violada e da paz social, restaurando a
confiança no Judiciário. É o que, desde já, requer o Ministério Público.
2. DO CRIME DE TORTURA E DAS FALTAS GRAVES
O exercício da atividade policial deve sempre submeter-se à legalidade e às
garantias constitucionais da pessoa humana, no exato desempenho de sua função
pública de alta relevância. A respeito, ensina ERNESTO PEDRAZ PENALVA sobre os
limites naturais desta atividade:
"...- en segundo lugar, unido a lo anterior, dado que el ejercicio de la
potestad policial ha de someterse a límites determinados derivados de su propria
esencia:
a) debe estar legalmente prevista,
b) ha de perseguir fines 'legítimos',
c) adoptar las medidas 'necesarias' para la conservación y logro de los mismos
y,
d) de tal modo que la restricción de las libertades y Derechos fundamentales y
demás reconocidos en las leyes no exceda de la medida absolutamente precisa." (Constitución,
Jurisdicción y Proceso. Madrid, Colección Iure, Ediciones Akal S/A, 1990, pp.
381 e 382)
O respeito à integridade física e moral é constitucionalmente assegurado ao
preso (art. 5º., XLIX), sendo seguido pela legislação infraconstitucional
protetora. A tortura, além de repelida pela Constituição da República (art. 5º.,
XLIII), é definida como figura típica criminal, prevista na Lei nº. 9.455/97, e,
por implicar em violação ao dever de urbanidade e respeito no trato com os
demais detentos, e ser considerado crime doloso, configura falta grave (art. 39,
III, c/c arts. 50, VI, e parág. único, e 52, da LEP).
Alertando a sociedade brasileira e, em especial, à comunidade jurídica detentora
de autoridade, ressalta OSCAR VILHENA VIEIRA os efeitos nocivos da
arbitrariedade no meio da sociedade e a inevitabilidade da atuação em defesa da
cidadania, sob pena de bloqueio do desenvolvimento do processo democrático:
"O segundo modelo de ruptura da normalidade é, a nosso ver, o mais relevante
quando se discute a questão do aprofundamento e consolidação da democracia do
Brasil. Diz respeito à ineficácia da ordem jurídica constitucional na sua função
de aplicação da lei, de monopolização e contenção da violência e do arbítrio, em
todos os níveis do aparelho estatal, numa situação de estabilidade
institucional. Surge, dessa maneira, um outro tipo de estado de exceção, que não
é aquele descrito por Carl Schmitt, mas que guarda muitas de suas
características. Trata-se de uma excepcionalidade cotidiana, inerente às
relações sociais e institucionais, onde a guerra atinge não um grupo político
adversário e organizado que busca chegar ao poder, mas à toda uma comunidade
difusa de indivíduos que, em diversos momentos de sua trajetória existencial, se
encontram totalmente destituídos de uma personalidade jurídica, ou melhor, de
uma capacidade de ter direitos. Estas situações em que indivíduos se confrontam
com o Estado e seus aparelhos de violência, ou ainda com aqueles agentes
privados aos quais é concedida (embora ilegalmente) a utilização de um aparato
de violência, são muitas vezes despidas de limites jurídicos ou éticos.
Diversamente de uma situação de conflito dentro do Estado de direito, onde há
limites legais, aos quais o Estado deve estar submetido ao se relacionar o mesmo
e se defrontar com os cidadãos, temos um espaço de ilegalidade em que prevalece
única e exclusivamente a força.
...
Sob esse signo da conciliação e do patrimonialismo, perdura um Estado que mantém
relações ambíguas com a sociedade: autoritário e violento para com a grande
maioria da população, dócil e transigente aos interesses das elites. Sem que a
sociedade brasileira seja capaz de provocar uma autêntica ruptura neste processo
circular, que tenha os direitos humanos como paradigma ético e a Constituição
como único caminho, a exceção continuará sendo a regra para largos setores da
população e a democracia continuará sofrendo grandes dificuldades em se
consolidar." (A Violação Sistemática dos Direitos Humanos como Limite à
Consolidação do Estado de Direito no Brasil. In Direito, Cidadania e Justiça,
São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1995, pp. 192 e 195)
Se a prática de tortura é rechaçada pela Constituição e pela Lei Penal, na sua
origem concebida para vedar práticas policiais contrárias aos direitos
fundamentais da pessoa humana, o que dizer de um preso provisório, policial
civil afastado de suas funções, como é o réu multicitado, que, agindo com a
reminiscência dos atos perpetrados de outrora, submeteu companheiro de cela,
juntamente com um comparsa, a violência física e moral? A observância dos
depoimentos colhidos nos docs. 05 e 06, comprovam a prática de crime de tortura
pelo acusado e por outro de nome Eduardo Varela Câmara.
Adite-se a esse fato o de descumprimento da ordem limitadora do horário,
prevista na autorização judicial, infração do dever enunciado no inciso V, do
art. 39, da Lei de Execução Penal.
Destarte, conclui-se que, ainda que V. Exa. entendesse pela não cassação da
autorização das saídas temporárias, o que evidentemente não espera o Órgão
Ministerial, sua revogação seria obrigatória, ante o teor do art. 125, da Lei
7.210/84, pela prática de crime doloso (tortura) e pelo cometimento das faltas
graves já mencionadas.
DOS PEDIDOS
Diante de todo o exposto requer o Ministério Público:
1º. Seja cassada, por flagrante ilegalidade, a autorização de saídas do acusado
do estabelecimento em que se encontra; ou, caso entenda V. Exa. legal o
benefício concedido, seja este revogado pelo cometimento do crime de tortura e
faltas graves;
2º. A transferência imediata do acusado para outro estabelecimento prisional, já
que o atual desrespeitou as ordens judiciais outrora determinadas, em relação à
escolta e horários de saída, que ofereça condições de custodiar o preso, com os
cuidados necessários, de acordo com a sua periculosidade;
3º. A juntada dos documentos em anexo, e a cientificação do inteiro teor destes
pelos advogados componentes do corpo de defesa do réu.
Nesses Termos,
Pede Deferimento.
[Local], [dia] de [mês] de [ano].
[Assinatura]