Ação declaratória de inexistência de obrigação
jurídico-tributária relativa ao ICMS sobre produtos funerários.
EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA .... VARA DA FAZENDA PÚBLICA COMARCA DE ...
ESTADO DO .....
....., pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ sob o n.º ....., com
sede na Rua ....., n.º ....., Bairro ......, Cidade ....., Estado ....., CEP
....., representada neste ato por seu (sua) sócio(a) gerente Sr. (a). .....,
brasileiro (a), (estado civil), profissional da área de ....., portador (a) do
CIRG nº ..... e do CPF n.º ....., por intermédio de seu advogado (a) e bastante
procurador (a) (procuração em anexo - doc. 01), com escritório profissional sito
à Rua ....., nº ....., Bairro ....., Cidade ....., Estado ....., onde recebe
notificações e intimações, vem mui respeitosamente à presença de Vossa
Excelência propor
AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA
em face de
Estado do ....., com sede na Rua ....., n.º ....., Bairro ......, Cidade .....,
Estado ....., pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos.
DOS FATOS
As autoras, que operam no ramo funerário, desde sua constituição jurídica
tiveram de se inscrever no cadastro do ICMS como contribuintes desse imposto.
A partir de então, obrigaram-se a recolher essa exação aos cofres estaduais, bem
como a satisfazer as obrigações acessórias determinadas pelo respectivo
Regulamento.
Ocorre, entretanto, que se deram conta de que não lhes cabe a exigência, quando
realizam operações de venda dos bens da espécie, posto que tais produtos estão
abrigados pelo instituto da não incidência tributária.
E, se assim é, estão a buscar na Justiça o reconhecimento desse direito que é
sonegado pelas autoridades estaduais e, por conseqüência, onera indevidamente
seus produtos.
Para fazê-lo, pedem vênia para expor a matéria de forma articulada, com o
intuito de tornar clara a discussão eminentemente jurídica da causa.
DO DIREITO
Objetiva-se, com uma consistente e jurídica argumentação, comprovar que os bens
móveis que se destinam a compor as cerimônias de sepultamento estão ao abrigo da
não-incidência do ICMS, para fins de reconhecimento judicial.
Para poder atingir esse desiderato, imprescindível buscar-se definições técnicas
e trazer à colação institutos do Direito, sem o que impossível a formulação da
respectiva tese.
Nas sociedades ditas civilizadas, há como que uma prerrogativa imanente à
personalidade humana. Todas as pessoas têm o direito subjetivo, potestativo e
absoluto, a que, depois de mortas, seu cadáver não fique exposto ao abandono,
como se fora os despojos de um animal. Esse direito consiste no recebimento de
um local em cemitério para o sepultamento dos restos mortais.
Em primeiríssimo plano, compete ao Poder Público a obrigação de inumar aqueles
que morrem. Esse dever maior deflui do artigo 1º, III, da Constituição Federal,
que sobreleva a dignidade humana, nos fundamentos da nacionalidade.
Em termos de Carta Magna, a obrigação do Governo também decorre dos ditames da
Saúde Pública (art. 196), posto ser esta um direito de todos e um dever daquele.
Se cadáveres em decomposição fossem deixados ao relento, certamente ocorreria a
disseminação de doenças e seria afetada a população sadia.
Há uma tradição, entretanto, de substituição dessa atividade pública por
particulares.
Parentes e amigos do morto costumam assumir o encargo de providenciar no enterro
porque às administrações públicas não caberia acrescentar ao cerimonial do
sepultamento os rituais religiosos e as homenagens. Aqueles e estas apenas as
pessoas mais chegadas ao falecido têm condições de proporcionar.
Mas, ao substituírem o Poder Público no seu dever, poupando-o dos gastos
inerentes, recebem, em contrapartida, um acréscimo do custo específico, com a
imposição de indevida tributação (ICMS, ISS) sobre os bens utilizados (urna,
mortalha) e os serviços que lhe são imanentes (transporte, organização,
convites, etc.).
Toda essa carga fiscal - é preciso enfatizar - é arcada pelos contribuintes de
fato, exatamente aqueles que substituem o Poder Público no seu encargo, uma vez
que os contribuintes de direito (fabricantes das urnas, das mortalhas, etc.)
repassam o ônus para a etapa seguinte da operação.
Essa oneração, todavia, decorre de exigência fiscal que não só é injusta, como
está visto, mas também é ilegítima, como se verá.
Para tanto, cumpre iniciar examinando fundamentais conceitos do Direito, como os
que respeitam às coisas e bens.
BEM (do latim bene) é sempre empregado na acepção de utilidade, riqueza,
prosperidade. No sentido jurídico, geralmente tal palavra é tomada no sentido de
coisa, correspondendo à res dos romanos.
Em sentido amplo, COISA é tudo quanto tem existência determinada no tempo e no
espaço.
Em sentido restrito, ou juridicamente considerando, COISA é aquilo que encerra
um valor econômico, podendo ser objeto de direito patrimonial.
Desde os tempos de Roma, as coisas receberam classificação. JUSTINIANO, a
propósito, reproduziu a concebida por GAIO, em suas famosas Institutas:
res in patrimonio
res extra patrimonio
res mancipi
res nec mancipi
res corporales
res incorporales
As res in patrimonio eram as coisas ou os bens que podiam ser objeto de
apropriação privada, constituindo, por conseguinte, o patrimônio de um
indivíduo.
Entre elas, distingue-se a res manicipi (terrenos itálicos e respectivos
edificações, escravos, servidões prediais, animais quadrúpedes de carga e de
tiro, etc.) e a res nec mancipi (as que não faziam parte da destinação à vida
rural).
As res corporales eram as que podiam ser tocadas (metais, vestuário, terra,
etc.) e as res incorporales as que não podiam ser tocadas pelo homem. As coisas
corpóreas, ainda, se subdividiam em divisíveis e indivisíveis (um escravo, um
animal, um quadro).
Havia, também, as res mobiles (que podiam ser deslocadas sem que se
deteriorassem) e as res immobiles (que não podiam sofrer deslocamento sem
deterioração. Distinguiam-se os semoventes, que podiam se deslocar por si
mesmos. Eram imóveis por excelência o solo e tudo quanto a ele se incorporasse
(árvores, construções, etc.).
Res fungibiles eram aquelas que, por seu gênero, podiam ser substituídas por
outras da mesma categoria (trigo, vinho, azeite, dinheiro, etc.). As res
infungibiles, de seu turno, tinham individualidade autônoma, sendo impossível
sua substituição por outra da mesma espécie (determinado anel, uma obra de arte,
etc.).
Eram res divisibiles as que podiam ser divididas sem perder as características
(dinheiro, terreno, etc.) e res indivisibiles as que eram justamente de
características contrárias (um quadro, uma pedra preciosa, etc.).
Afora essas, cujo destaque tem apenas valor perfunctório, ressumbra de maior
valia ao caso outra subdivisão das coisas que, agora sim, reúne máximo interesse
na apreciação do caso presente.
Tratam-se das res divini juris (coisas sagradas e coisas religiosas) e da res
sanctae.
RES SACRAE eram as coisas consagradas aos deuses superiores por cerimônias
especiais; consacratio ou dedicatio. Servem como exemplos: os objetos do culto e
os templos.
RES REGIOSAE eram as coisas consagradas aos deuses, como os túmulos. Por isso,
os restos mortais não podiam ser inumados se não tivessem o jus sepulchri sobre
o terreno, que o caracterizava como religioso e o submetia a regras especiais,
sancionadas pelos interditos.
RES SANCTAE eram as coisas que, embora não consagradas aos deuses, tinham
caráter religioso. São exemplos: as muralhas, as portas das cidades, os limites
dos campos.
Em função de seu destino, as COISAS SAGRADAS ou as COISAS DE PROPRIEDADE PÚBLICA
se situavam fora do patrimônio dos cidadãos. Eram as res extra patrimonium.
Essas res extra patrimonium eram também denominadas de BENS ou COISAS FORA DO
COMÉRCIO, expressão que se referia aos itens que não podiam ser transformados em
outros bens ou coisas, seja porque insuscetíveis de apropriação, seja porque as
normas os tivessem reservado para bem comum, sendo, por isso, inalienáveis e
imprescritíveis.
As res extra commercium abrangiam os casos em que as coisas, não podendo ser
convertidas em bens, não podiam ser objeto de direito por parte da pessoa.
Entre os bens da espécie, encontravam-se os communia omnia, que englobavam as
coisas de uso de todos por seu próprio destino: o ar, a água corrente, a luz, o
mar; e também as res publicae, que eram as coisas pertencentes ao Estado, mas de
uso comum: os rios navegáveis, as praças, as estradas, etc.
Em sentido mais restrito, os bens fora do comércio atingiam àqueles que, mesmo
não dispostos na categoria dos inapropriáveis, por ser um bem comum ou bem
público, não podiam ser objeto de operação ou de contrato.
Os romanos também incluíam - já faz mais de 20 séculos - como incomerciáveis as
res divini juris, entre as quais as res sacrae, as res religiosae e as res
sanctae e esse entendimento chegou até os nossos dias, através dos costumes dos
colonos portugueses, espanhóis, italianos, alemães, franceses, holandeses,
negros, gregos, poloneses, judeus, árabes, japoneses e de tantas outras
nacionalidades que formaram a miscigenada população brasileira.
Não obstante, nossa Constituição Federal não concedeu imunidade a esses bens, em
forma expressa.
Analisemos o tema, a seguir.
Relativamente as tributos em geral, a imunidade é uma exclusão constitucional do
poder de tributar. Configura proibição absoluta ao exercício desse poder. Emerge
da Constituição e as pessoas ou os bens assim previstos se tornam inatingíveis
pelas leis tributárias.
No dizer de Ruy Barbosa Nogueira, a imunidade é uma não-incidência juridicamente
qualificada (in "Curso de Direito Tributário", 1976).
No de Paulo de Barros Carvalho, é uma classe finita e imediatamente determinável
de normas jurídicas contidas no texto constitucional e que estabelecem, de modo
expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional
interno para expedir regras institucionais de tributos que alcancem situações
específicas e suficientemente caracterizadas (in "Curso de Direito Tributário",
1985).
Há preceptivo constitucional que trata da matéria de forma genérica. Ei-lo:
"Art. 150 - ... é vedado ... aos Estados ...:
IV - instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
b) templos de qualquer culto;
c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas
fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de
educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos
da lei;
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão."
E há regras, na Carta Magna, que tratam das imunidades atinentes ao ICMS (art.
155, § 2º, X), como as seguintes:
a) são imunes as exportações de produtos manufaturados;
b) são imunes as operações interestaduais de petróleo, lubrificantes,
combustíveis e energia elétrica;
c) são imunes as operações com ouro, enquanto ativo financeiro ou instrumento
cambial.
Como se constata, deixou a Constituição Federal de prever a imunidade dos bens e
serviços que constituem o funeral, ou que são produzidos, construídos, vendidos
ou prestados para fins dele.
Seguramente, não o fez porque é provável que os constituintes tivessem
consciência de que o jus sepulchri os mantinha fora do alcance de qualquer
legislação tributária inferior e seria uma heresia jurídica dar eficácia ao fato
através da imunidade.
Feitas essas considerações, passemos ao exame do instituto da não-incidência.
A incidência é um fato juridicamente relevante que se dá quando a situação
prevista em lei se realiza, dando nascimento à obrigação tributária.
A isenção é a dispensa do pagamento do tributo devido - feita por disposição
expressa de lei - configurando uma exceção na tributação. Só há isenção quando o
tributo é devido e é feita uma lei para isentar o contribuinte do seu pagamento.
Assim, a isenção não configura benefício permanente, perpétuo, imutável. Basta
revogar a lei da isenção e o tributo volta a ser exigível, eis que continuou a
ocorrer o seu fato gerador.
Já a não-incidência é a circunstância de a situação a que se refere ficar fora
dos limites do campo tributário. Assim, não ocorre o fato gerador, posto que a
ocorrência não é alcançada pela lei. É perpétua, está fora do alvedrio do
legislador ordinário, uma vez que o tipo de operação realizada ou o bem
envolvido nela não são atingidos pela hipótese descrita na lei tributária,
inexistindo, portanto, fato gerador.
Algumas legislações arrolam os casos de não-incidência, outras não. Quer parecer
que com as últimas está a melhor técnica jurídico-legislativa, posto que
limitadas sempre serão apenas as hipóteses de incidência.
Em termos de ICMS, por exemplo, é evidente que esse tributo não incide sobre
compra e venda de um apartamento, pelo simples fato de que se trata de imposto
sobre mercadorias, que só podem ser bens móveis. As legislações sequer referem a
hipótese.
Porém interessa à apreciação do caso analisar outras situações em que a
não-incidência decorre de práticas costumeiras, como a seguir se relata.
Os nichos dos cemitérios, as covas, os mausoléus, à toda evidência são bens
imóveis. Por decorrência lógica, as transferências de propriedade atinentes
estariam sujeitas à tributação, posto que inexiste previsão legal ou
constitucional de sua dispensa.
Todavia, as operações de compra e venda desses locais estão ao abrigo da
não-incidência tácita do imposto de transmissão. Em nenhum município do Brasil -
seguindo a regra adotada pelos Estados, titulares da competência do tributo até
a CF/88 - há exigência do ITBI, quando da mudança de propriedade ou da cessão de
direitos sobre esses bens sagrados.
Essa prática costumeira vem do tempo em que o imposto de transmissão se chamava
SISA e é conseqüente ao vetusto raciocínio jurídico de que as res divini juris
são intributáveis.
Explica-se, de outro modo, o costume em face de que uma tumba somente é vendida
para ser utilizada como uma tumba, jamais poderia ter outra finalidade. Se
viesse a ter, seguramente se sujeitaria à tributação.
Mas não é apenas em relação ao imposto de transmissão que se dá o fenômeno. Ele
ocorre também sobre os serviços.
Há uma não-incidência tácita do ISS sobre os serviços religiosos cobrados
(missa, culto, casamento, batismo, extrema-unção, encomendação do corpo, etc.).
Idêntico tratamento sempre foi dado aos serviços de canto e música cobrados
pelas igrejas, nos casamentos dos mais abastados.
De igual modo, nunca uma prefeitura se atreveu a exigir o ISS sobre os serviços
do coral que cobra para cantar hinos fúnebres na cerimônia de sepultamento. Em
toda a existência, não se conhece a exigência do imposto aos tocadores de
clarins, muito menos às carpideiras.
Vale o mesmo para os atinentes à manutenção ou melhoramento das sepulturas, tais
como a limpeza, a pintura, a construção do mausoléu, etc.
A não-exigência do imposto pelos órgãos fiscalizadores e arrecadadores das
municipalidades não decorre da lei, mas da prática centenária das
administrações.
A explicação está no fato de que tais serviços se relacionam com as res divini
juris, logo fora do alcance da tributação. São de natureza sagrada, jamais se
confundindo com as que visam ao entretenimento ou com as que têm conteúdo
artístico.
Esgota a recordação desse fenômeno tributário muito visível e presente, cabe,
agora, trazer a lume o exame circunstancial do ICMS, cuja legislação ordinária
também nada refere, mas ao contrário do que acontece com o ITBI e com o ISS,
seus agentes fiscais entendem ser ele exigível para os bens divini juris.
A Constituição Federal não cria tributos, apenas outorga competência para que as
pessoas políticas nela indicadas venham a instituí-los e, assim, cabe às
unidades federadas, no exercício de suas funções legislativas, decretar a
exação, nos moldes e nos lindes pré estabelecidos.
Inscrito no quadro da competência privativa dos Estados-membros e do Distrito
Federal, o ICMS está previsto no art. 155, I, b, da Carta de 1988. Ali diz que
compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir imposto sobre Operações
Relativas à Circulação de Mercadorias (...).
À primeira vista, o imposto que incide sobre as operações relativas à circulação
de Mercadorias alcança todas as transações - onerosas ou não - que envolvam bens
móveis.
Na prática, todavia, essa afirmação não resulta verdadeira, de vez que nem todos
os bens móveis são Mercadorias, eis que há alguns cuja circulação se faz ao
abrigo da imunidade e porque existem outros não tributáveis por inatingíveis
pela incidência da legislação.
Neste ponto, calha relevante relembrar, por necessário, que o sistema
constitucional tributário brasileiro é do tipo rígido, o que permite afirmar que
somente podem ser objeto de exação as Operações Relativas à Circulação de
Mercadorias, extrai do artigo 155, I, b, da Constituição Federal.
Assim, para que se perfectibilize o direito de crédito do Erário aos valores
acaso gerados, é mister que tenha ocorrido uma operação comercial, antes de mais
nada, e que tal seja de circulação (ficta ou real) de mercadoria.
Se todos esses requisitos não se concretizarem, não há falar-se em crédito
tributário, posto que este não nasceu.
O elemento chave, isto é, o núcleo da definição constitucional do ICMS é a
palavra Operações.
Ele é um tributo sobre Operações. Circulação de mercadorias é o restritivo do
elemento chave, especificando quais as operações do mundo fenomênico é que estão
sujeitas à exação.
O vocábulo está empregado na acepção de atos Jurídicos, que são atos regulados
pelo direito, isto é, produtores de efeitos juridicamente relevantes.
Na técnica mercantil, a Operação é, sem dúvida, a realização de negócios
comerciais, indicando, assim, o resultado ou o efeito do ato mercantil, podendo
significar Transação.
O ICMS, por outra banda, somente é exigível se a operação se refere a uma
Circulação de mercadorias. Mas não uma circulação em sentido absoluto, uma mera
movimentação física. Para ser gerado efetivamente o tributo, cumpre que a
circulação se tenha realizado no sentido jurídico, quer dizer, que tenha havido
mudança de titularidade da mercadoria.
A noção jurídica de Circulação consiste no distinto fato que habilita o
adquirente a dispor livremente da mercadoria, tornando possível o exercício do
seu direito de propriedade.
Mas, para que a exigência do ICMS reste aperfeiçoada, é indispensável, ainda,
que a operação relativa à circulação se refira a uma Mercadoria. Se o bem objeto
da circulação não for Mercadoria, inocorreu a hipótese de incidência insculpida
na Carta Magna.
Os dicionários jurídicos definem mercadoria como sendo objetos móveis destinados
ao comércio. Essa palavra é de origem latina. Refere-se a coisas que se vendem e
se compram. Coisas que fazem o objeto da mercancia. Sua vertente é MERX, MERCIS,
no plural MERCES, MERCIUM.
No Direito brasileiro, são mercadorias apenas as coisas móveis, consideradas
como objeto da circulação comercial. Assim, embora Pontes de Miranda tenha
ensaiado tese contrária que não vingou, a compra e venda de terrenos e/ou
apartamentos não constitui operação mercantil, posto que tais bens não são
atingidos pelas regras emanadas do nosso Código Comercial. As imobiliárias, como
se sabe, não praticam atos de comércio.
Mercadoria é a designação genérica dada a toda coisa móvel que possa ser objeto
de comércio. Entre a coisa móvel e a mercadoria, a distinção se situa no gênero
para a espécie. Todas as mercadorias são necessariamente coisas; nem todas as
coisas, entretanto, são mercadorias.
Não há diferença de substância entre coisa e mercadoria. A diferença se dá pela
destinação: somente as coisas que se destinam ao comércio é que recebem a
denominação de mercadorias.
Para o dicionarista Antenor Nascentes, é mercadoria qualquer objeto, natural ou
manufaturado, que se possa trocar e que, além dos requisitos comuns a qualquer
bem econômico, reúne outro requisito extrínseco: a destinação ao comércio. São
no mesmo sentido as definições de outros lexicógrafos clássicos, como Antônio da
Silva Moraes, Caldas Aulete, Frei Domingos Vieira.
Sem nenhuma dúvida, o vocábulo não se presta para designar, nas províncias do
direito, senão a coisa móvel, corpórea, que está no comércio (eqüivale dizer:
bens suscetíveis de serem negociados). Dentro desse conceito, todavia, admite
pequenas variações semânticas, podendo significar coisas fungíveis e
infungíveis.
Destarte, tanto é mercadoria a obra de arte, exposta à venda em uma galeria,
como o alimento e até mesmo o dinheiro com que especula a instituição
financeira.
No seu "Trattato Teorico-Pratico di Diritto Commerciale" (vol. I, pp. 277/278,
Fratelle Bocca Editora, Torino, 1921), Umberto Navarrini já chamava a atenção de
que:
"Normalmente, di merci vengono considerate no in quanto presentano caratteri
propi, ma in quanto appartengano a un genere determinato, e quindi caratteri
comuni com tutte quelle che lo constituiscono. In altri termini, aggeto normate
dei contratti commerciali su merci sono le cose fungibili-cose, cioe, che
possono essere sostituite l'una all'altra, perche, avendo assunto caratteri
comuni, che sono prevalenti di fronte agli individuali, servono equalmente a
soddisfare gli stessi bisogni."
Fazendo estreita a noção de mercadoria - para denominar apenas os bens fungíveis
- Navarrini não deixou de dar ênfase àquela qualidade extrínseca à própria
essência do objeto, qual seja a de se constituir instrumento normal dos
contratos comerciais.
Disso resulta que a natureza mercantil da mercadoria não se situa,
absolutamente, entre os requisitos que lhe são intrínsecos, mas na destinação
que se lhe dê.
De destacar, por relevante, que integra a natureza da mercadoria a condição de
ser um bem móvel, passível de troca, e que satisfaz a alguma necessidade de quem
a adquire.
Por conseqüência de todo o exposto, deflui intuitiva a noção de que as operações
de circulação de que trata o texto constitucional somente atingem aqueles bens
que efetivamente sejam mercadorias em sua natureza jurídico finalista.
Ninguém (contribuinte inscrito ou não) pode transportar um boi (vivo ou morto)
sem nota fiscal, pena de pesada multa administrativa por sonegação.
Mas, de outra banda, pode sair a passear com um cão que estará fora de risco, se
um fiscal o encontrar sem a respectiva documentação.
Fácil de entender as duas circunstâncias, porquanto, no primeiro caso, estará
concretizando uma operação sujeita ao ICMS, já que o bovino é induvidosamente
uma mercadoria, ao contrário do animal canino, de estimação, sabidamente um bem
extra-commercium.
As res divini juris são "mercadorias-aparentes", isto é, são mercadorias em
termos absolutos que perdem essa condição em face da sua destinação.
Essa situação com reflexo tributário não está no direito positivo, mas no
consuetudinário.
Observe-se que jamais se cogitou incidisse o ICMS sobre as hóstias distribuídas
na santa missa, embora o pão normal (vendido ou doado por padaria) esteja
sujeito ao tributo.
Vale o mesmo para os santinhos, que não se confundem com a expressão "templos de
qualquer culto", nem são "livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua
impressão".
Assim também não há nem nunca houve exigência do ICMS sobre o vinho elaborado e
consumido na missa, bem como em relação ao óleo utilizado nas épocas de crisma
ou ao incenso queimado nas cerimônias católicas.
Igual tratamento (não-incidência) também foi sempre dispensado às demais
"mercadorias-aparentes" confeccionadas e consumidas ou mesmo somente utilizadas
em cerimônias de outras religiões. São velas, estátuas, andores, altares,
figuras impressas, conchas, pedras, cereais, tecidos, cabritos, galos vermelhos,
etc. que são comprados e vendidos sem serem tais operações tipificadas como
relativas à circulação de mercadorias.
Urnas funerárias são bens em que repousam ou se guardam os mortos recentes e
suas cinzas. São coisas construídas com uma finalidade induvidosa: acomodar o
corpo do morto e facilitar o seu sepultamento.
Vale o mesmo para as mortalhas e outros apetrechos que acompanham os corpos
sepultados, ou servem para solenizar as cerimônias de velório e sepultamento.
Compõem um conjunto do tipo res divini juris com os restos mortais, a sepultura,
o mausoléu, a lápide, o canteiro de flores, etc.
Não tem por alvo dar satisfação a quem as adquire.
Por óbvio, não configuram mercadorias, posto não serem destinadas à troca. Têm
as mesmas características jurídico-finalistas das hóstias, dos vinhos de missa,
também "mercadorias-aparentes", não alcançadas pela tributação em face do
caráter religioso, sagrado, santo, místico, de sua destinação.
O Direito positivo, através dos tempos, sempre se manteve em íntima conexão com
os fatos sociais que, na realidade, são sua permanente fonte material. Tal
dependência do ordenamento jurídico às manifestações sociais é fato marcante em
toda a história do Direito.
Antigamente, a influência era tão sobressalente que o costume, além de fonte
material, era a forma de expressão do Direito por excelência.
Hodiernamente, entretanto, salvo o sistema dos povos anglo-americanos, o costume
já não possui tanta expressividade. Apesar disso, continua com a função
supletiva da lei, suprindo as lacunas do Direito escrito.
Defendem alguns juristas que existiria uma lei natural, imanente ao Direito,
pela qual os sistemas jurídicos deixariam a sua forma consuetudinária e se
transformariam, progressivamente, em Direito codificado. O desenrolar da
história parece confirmar a teoria. Os povos, nos seus primórdios, adotaram
normas de controle social decorrentes do consenso geral. As antigas legislações
(Hamurabi, XII Tábuas) foram, em grande parte, compilações dos costumes.
Enquanto a lei é um processo intelectual baseado em fatos e expressa a opinião
do Estado, o costume é uma prática gerada de forma espontânea pelas forças dos
grupos sociais.
Se, de um lado, a lei configura um Direito que sempre aspira à eficácia, o
costume é norma eficaz que aspira à validade.
Diante de situação concreta cujo deslinde não conste de nenhuma norma vigente, é
comum que as partes envolvidas, alicerçadas no bom senso e no sentido natural da
justiça, adotem solução que, por racional e adequada ao bem comum, venha a
servir de modelo para outros casos semelhantes.
Uma pluralidade de casos da espécie, no correr do tempo, gera a norma
costumeira.
Os costumes jurídicos - consuetudo - não podem ser confundidos com as regras de
trato social, posto que são marcados pela exigibilidade e dizem respeito aos
interesses básicos dos indivíduos.
O costume é previsto no ordenamento jurídico vigente no Brasil, dentro de suas
fontes formais. São de sua essência dois fatores indissociáveis: o material e o
psicológico.
O elemento material, também denominado objetivo, exterior, é a inveterata
consuetudo dos romanos. Consiste na repetição constante e uniforme de uma
prática social. Pressupõe pluralidade de atos, por longo tempo.
O elemento psicológico, também conhecido como subjetivo ou interno, é a opinio
juris seu necessitatis dos romanos. Significa a existência de uma convicção de
que a prática social reiterada, constante, uniforme, é tanto necessária quanto
obrigatória. Impõe a certeza de que a norma adotada espontaneamente pela
sociedade possui valor jurídico.
A doutrina distingue três espécies de costumes: segunda a lei, além da lei e
contra a lei.
O costume secundum legem se caracteriza pela prática .....(?) correspondendo à
lei, apenas introduzindo novos padrões de comportamento à vida social. Há
autores que não admitem tal espécie, alegando inexistir norma gerada pela
sociedade, mas prática decorrente da própria lei.
O costume praeter legem é o que se aplica supletivamente quando há lacuna na
lei. Trata-se de espécie admitida pela maioria das legislações modernas dos
países adiantados. No Brasil, dispõe o art. 4º da Lei de Introdução ao Código
Civil que:
"Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais de direito."
Já o costume contra legem, também chamado de consuetudo abrogatoria, se
caracteriza pelo fato de que a prática social contraria as normas escritas.
Embora haja divergência doutrinária quanto à sua validade, o pensamento
predominante é no sentido de que uma lei só pode ser revogada por outra.
Para o Direito brasileiro, que se filia no sistema continental, a lei é a sua
principal fonte formal. Na sua ausência, como se viu, pode ser aplicado se
inexistir a analogia como fonte. A regra está repetida no artigo 126 do Código
de Processo Civil.
Em relação ao Direito Comercial, há previsão de aplicação em vários dispositivos
do Código (art. 154, 169, 673).
A legislação trabalhista, por seu lado, refere sua adoção ao artigo 8º da
Consolidação das Leis do Trabalho.
Entretanto, impraticável a aplicação do costume - pelo menos contra o criminoso
- no Direito Penal, em face do princípio da reserva legal, enunciado por
Feuerbach (nullum crimen nulla poena sine lege).
Mas, no campo do Direito Internacional Público, que é extremamente peculiar por
não existir comando de um poder centralizador, o Costume aparece como sua fonte
universal, embora as normas consuetudinárias que o compõem não tenham natureza
cogente ou taxativa, motivo pelo qual podem ser substituídas através de tratados
internacionais.
O princípio jura novit curia, segundo o qual os juizes conhecem o direito,
ficando as partes dispensadas de fazer prova do Direito invocado, não se aplica
quanto ao costume, diante do disposto no artigo 337 do CPC.
No caos presente, o costume vigente, desde que o Brasil existe, é que os bens
que compõem o campo-santo, seja em termos globais, seja em unitários, são do
tipo divini juris.
Nessas condições, impossível exercer a tributação sobre a circulação de seus
componentes, posto que, por não serem Mercadorias, no sentido jurídico do termo,
são bens fora do comércio.
Quando não se encontra na normatização uma perfeita previsão do fato, devemos
nos valer de outras fontes do Direito para encontrar solução adequada ao caso,
buscando no instituto da integração o processo de preenchimento da lacuna,
partindo do uso de elementos que a própria legislação oferece, ou através de
princípios jurídicos e mediante operação lógica e juízos de valor.
A integração se vale da analogia e dos princípios gerais de Direito,
constituindo um recurso técnico que leva a aplicar, diante de um caso não
previsto pelo legislador, solução por ele alvitrada para uma outra hipótese
fundamentalmente semelhante ao fato em questão. Não configura fonte formal, já
que não cria norma jurídica, em que pese conduzir o intérprete ao seu encontro.
No caso presente, é lícito e técnico afirmar que, ocorrendo a não-incidência
tácita de outros tributos sobre os bens divini juris, por analogia também do
ICMS eles estão sob o mesmo abrigo.
Como se demonstrou à exaustão, há uma série de ponderações técnicas que
satisfazem a tese da não-incidência da tributação do ICMS sobre os bens e
serviços em questão. Parte concerne à analogia, parte aos costumes.
Mas o maior de todos os argumentos em que se fundamenta a tese, sem nenhuma
dúvida, é o que respeita ao aspecto deontológico de tal exação. Impossível
justificar-se a existência de um custo tributário incidindo sobre os
sepultamentos, quando o ato de sepultar os mortos é obrigação do Governo.
Os fiscos estaduais, contudo, recalcitram em reconhecer o fato, punindo aqueles
que deixam de recolher o ICMS, desde que esse imposto foi criado. Teimam em
ignorar o fato de que os países mais adiantados - que adotam o tributo sobre o
valor agregado, do qual o ICMS é cópia defeituosa - não tributam os bens e
serviços sagrados, santos e sacros, entre os quais se incluem as urnas
funerárias, as mortalhas e os artigos correlatos.
Por isso, é preciso que o Poder Judiciário se pronuncie definitivamente sobre a
questão, reconhecendo a não-incidência e, consequentemente, a inexigibilidade
dos tributos sobre os bens de que se trata.
DOS PEDIDOS
Fortes em todo o exposto, as autoras requerem à Vossa Excelência:
a) a citação do réu, na pessoa do seu representante judicial, a fim de que
conteste a ação, querendo, sob pena de revelia;
b) que prolate sentença reconhecendo a não-incidência do ICMS sobre a venda de
urnas funerárias, mortalhas e outros artigos da espécie, destinados ao
sepultamento de pessoas mortas;
c) que condene o réu em custas e honorários advocatícios, a serem arbitrados por
esse Juízo.
Protestam pela produção de todos os meios de prova em direito admitidas, sem
exceção de nenhuma.
Dá-se à causa o valor de R$ .....
Nesses Termos,
Pede Deferimento.
[Local], [dia] de [mês] de [ano].
[Assinatura do Advogado]
[Número de Inscrição na OAB]