Este seu olhar...
Princesa,
Há muito tempo não escrevo uma carta. Na verdade, nem me lembro ao certo como se
faz. Não sei se devo falar de coisas quotidianas, de poesia ou música, da
saudade que já sinto de você ou do quanto eu gostaria de conhecer o Algarve, por
exemplo. Mas, como não sabia exatamente como começar a carta que te prometi e
que, com certeza vai me dar muito prazer escrever, escolhi um tema que julgo
pouco comum na maioria das cartas que percorrem os tortuosos caminhos dos
Correios: vou falar sobre os olhos, e só sobre os olhos.
E por que falar sobre os olhos e não sobre as mãos? Por que os olhos e não o
coração? Por que, se são as mãos que tocam e é o coração quem parece que sente?
Então, eu respondo dizendo que eles foram escolhidos para protagonizar essa
nossa "conversa" porque são os únicos que podem tocar a distância, são eles que
transpassam os limites do horizonte. Enquanto, às vezes, o coração se perde no
infinito e as mãos suam sem saber o que fazer num raio de um metro, os olhos
podem passear pela lua ou penetrar a alma. Enquanto, às vezes, o coração se
perde em infinitas mentiras, os olhos são duas verdades que se encontram no
infinito.
Ou serão duas cerejas metafísicas? São ou não são, eis a questão... Só tenho
mesmo a certeza de que os olhos são nosso tacto à distância, mas deixa prá lá
que eu já estou delirando muito e ainda nem comecei a carta.
Nos olhos repousam a Íris e a Retina. A Íris é quem percebe da luz e a Retina é
quem guarda essa luz nas nossas memórias. Eu, pessoalmente, gosto muito da Íris
e da Retina, pois sem elas não teria a exata dimensão de como é esse alguém que
me faz sentir assim tão confuso nesta belíssima manhã.
Ah, há também o Cristalino. Este não sei bem para que serve, mas se lá está
deve ter alguma nobre função, sem contar que também tem um nome bastante bonito,
a exemplo das amigas Retina e Íris. Pois é assim, Íris, Retina, Cristalino e a
indefectível Pu-pi-la. Belos sons têm os olhos, não acha? Deve ser por isso que
há tantas canções falando deles, de seus efeitos e, engraçado, até de seus
defeitos! Lembra-se da música do Chico Buarque? -
amo tanto e de tanto amar
acho que ela é bonita
tem um olho sempre a boiar, outro que agita
tem um olho que não está
meus olhares evita
e outro olho a me arregalar sua pepita...
e por aí vai.
Se por um lado provocam sons, os olhos também ouvem. Coisas que não queremos
pronunciadas nem mesmo entredentes, às vezes nos calam fundo no peito porque
nosso olhar obrigou:
Quando olhastes bem nos olhos meus e o teu olhar era de adeus..., ih, olha eu
atacando de Chico Buarque novamente. Estou sendo pouco original...
Mas, voltando ao menu principal, os olhos também têm paladar. São através
deles que alguns pratos nos seduzem. Aliás, deveriam proibir fotografias dos
pratos nos livros de culinária. São um grande engodo, pois nos águam a boca e
nunca conseguimos fazer igual. Falando nisso, só depois de adulto fui descobrir
que na produção dessas fotos as alfacinhas e tomatinhos são devidamente
maquilados, escovados, penteados, perfumados etc e tal. E pra quê? Para agradar
aos nossos olhos, é óbvio.
E olfato? Quem pensa que olhos não têm olfato está cego do nariz (desculpa
mas não resisti). No momento em que escrevo esta cartinha e olho para a sua
fotografia, é-me impossível não sentir o bom e sedutor perfume que sempre te
acompanha. Engraçado, consigo perfeitamente sentir, através do olhar, o aroma do
perfume que você usava à noite. Olho pela janela. Décimo andar, vidraça fechada
e o nariz entupido pela constipação. Sinto o cheiro desta simpática Lisboa que
rapidamente me seduziu e que me faz tão bem. Olho outra vez prá você, linda e
luminosamente morena ou morenamente luminosa e sinto o teu perfume de ontem. Os
olhos podem tudo, princesa...
Outro dia paramos nas Docas e vimos o barquinho a deslizar no macio azul do
Tejo, num doce balanço a caminho do mar (misturei tudo mas tudo bem) e senti
paz. Olhos são assim, profundas lagoas de paz.
Olhos também são fúria. O olho do furacão. O remoinho. O coração.
Olhos são cores. Azuis, castanhos, negros, amarelos, verdes, os teus - únicos, e
tem os da Elizabeth Taylor, of course como diriam em Green Ville.
Olhos são pérolas. São pares de estrelas.
Olhos são pedras. Esmeraldas, turquesas, onix.
Olhos são diamantes. Negros ou claros. Já, os teus: raros.
Olhos são sonhos. São eles que se movimentam enquanto os sonhos "alimentam de
horizontes o tempo acordado de viver". O tal do REM, conhece?
Olho é sabor. Ou o que serão "olhos amendoados"?
Olho é forma. Ou o que serão olhos amendoados? Olhos rasgados?
Olhos são esperança. Principalmente quando temos febre e precisamos de um olho
clínico.
Olho é sentimento. Olho é brilho e lágrima, o brilho da lágrima, a lágrima da
alegria, a lágrima do lamento. O olho marejado, a emoção reprimida. O olho é o
olho é o olho é o olho. Pena que atualmente estejamos cada vez mais eletrônicos
em nossos olhares, mas vamos tentar olhar isto de uma forma otimista, certo.
Afinal, as coisas sempre acabam bem, e se não estão bem é porque ainda não
acabaram.
E, por falar nisso, minha princesa, gata linda, criatura adorável (não vá dizer
que são meus olhos), responda depressa e ganhe um prêmio surpresa: quando é que
eu vou te ver de novo?
Olha, divirta-se.
Fica com o meu beijo e o olhar atento do teu anjo-da-guarda.
Ah, já ia esquecendo de uma coisa. Quando você chegar, lança uma piscadela
prá mim...
Ciao bela, beijo grande e saudades do (assinatura)