Sim, os fortes. As mesmas razões que o levaram ao sucesso podem fazer sua
carreira descarrilhar, diz uma consultora americana
William Calley Jr. era o que se poderia chamar de um amigo leal. "Se você
tivesse um problema às três e meia da madrugada, ele estaria lá para ajudá-lo",
diz um ex-colega. Era também um rapaz extremamente cioso de suas obrigações (não
à toa: surpreendido colando numa prova, na sétima série, foi enviado pelo severo
pai a um colégio militar, para que aprendesse o valor da disciplina e da
obediência a regras). Essas qualidades fizeram com que chegasse a tenente do
exército americano, e ele apostava nelas para subir ainda mais na carreira. Eram
seus pontos fortes.
Em 16 de março de 1968, durante a Guerra do Vietnã, Calley chefiava o pelotão de
soldados encarregados de destruir uma base de guerrilheiros vietcongues na
aldeia de My Lai. Quando chegaram ao local, os soldados não viram sequer um
combatente - havia apenas mulheres e crianças, centenas de mulheres e crianças.
Numa situação de crise, Calley recorreu ao comportamento que até então sempre
tinha dado certo para ele, desde a infância: cumpriu suas ordens. À risca, com
precisão e capricho. Naquele dia, o tenente do exército dos Estados Unidos
William Calley Jr. levou ao extremo seu elogiadíssimo comportamento profissional
e liderou o hediondo massacre de civis que entrou para a história da loucura das
guerras.
Atrocidades como essa são bastante raras, mas, guardadas todas as devidas
proporções, é assim que se comportam milhares de executivos, afirma a consultora
de carreiras americana Lois Frankel. Eles apostam cegamente nos seus pontos
fortes, os mesmos que os tornaram bem-sucedidos, e acabam vendo suas carreiras
descarrilhar justamente por causa disso. Segundo o Center for Creative
Leadership (centro para liderança criativa), uma das principais instituições de
pesquisa e treinamento de líderes dos Estados Unidos, entre 30% e 50% dos
executivos de alto potencial perdem a rota. Não há estudo semelhante no Brasil,
mas também não há razão para supor que a taxa de derrapagens seja diferente por
estas bandas. "Não estamos falando de qualquer pessoa, estamos falando de gente
que alcançou o sucesso, que sabe o que é o sucesso, e de repente descarrilha",
diz Lois, sócia do Corporate Coaching International, uma empresa especializada
em aconselhamento de executivos.
Psicóloga de formação, Lois, de 47 anos, trabalha há 20 anos com recursos
humanos, 11 deles em sua própria empresa, aconselhando executivos com problemas
de carreira. O acompanhamento de um profissional competente que esteja com
problemas não sai barato: de 10 mil a 20 mil dólares, por cerca de seis meses de
trabalho. "Mas as substituições costumam sair mais caro para as empresas, por
volta de 100 mil dólares, contando os custos da demissão e da contratação de
outro executivo", disse Lois, em entrevista por telefone. Segundo ela, o que faz
um profissional competente começar a descarrilhar não são suas falhas. "As
pessoas não se tornam bem-sucedidas porque têm falhas, mas porque têm pontos
fortes", diz. "O problema ocorre quando eles se apóiam excessivamente nesses
pontos fortes, deixando de desenvolver comportamentos alternativos." Como assim?
Em seu livro, Overcoming Your Strengths (em português seria Superando Seus
Pontos Fortes), da editora Harmony Books, Lois cita exemplos:
Jamie era uma profissional independente e decidida. A uma certa altura de sua
carreira, no entanto, começou a falhar por acumular trabalho e não conseguir
pedir ajuda.
O ex-presidente americano Jimmy Carter tinha como um de seus pontos fortes
durante a eleição o fato de não pertencer ao "clubinho" político de Washington.
No governo, ele falhou em conseguir apoio do Congresso para implementar suas
políticas domésticas.
Um dos pontos fortes de Maria era construir relacionamentos, mas ela era
constantemente relegada quando surgia a oportunidade de ocupar um cargo de
diretoria. Suas maiores qualidades - afabilidade, empatia, ser boa ouvinte - não
eram equilibradas com a capacidade de ser direta e decidida.
Jeff era um rapaz extremamente bonito, andava muito bem vestido, estava sempre
bronzeado e tinha um corpo atlético. Combinada com uma inteligência natural, sua
aparência o ajudou a ter sucesso como representante de vendas de uma empresa
farmacêutica. Mas seu caminho era bloqueado pelo fato de que seus colegas não o
levavam muito a sério, consideravam-no meio superficial e afetado.
Joe era extremamente inteligente, tinha sempre uma resposta na ponta da língua e
solução para tudo. Mas seus comentários costumavam ser um pouco agressivos e sua
carreira entrou num impasse quando ele embaraçou seu chefe numa reunião, na
presença do chefe dele.
A ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher devia grande parte de seu
sucesso ao fato de ser a "dama de ferro", determinada e irredutível em suas
convicções. Depois de três mandatos, perdeu a liderança do Partido Trabalhista
por não conseguir acomodar as diferenças entre seus correligionários.
Como surgem esses pontos fortes e por que as pessoas tendem a se apoiar tanto
neles? "Eu não tenho pesquisa nenhuma sobre isso, mas suponho, com base na minha
experiência, que esses pontos fortes são desenvolvidos na infância", diz Lois.
"Nós crescemos em casas com certas regras de comportamento e aprendemos a lidar
com esses critérios. Ninguém diz isso explicitamente, mas nós percebemos, quando
crianças, qual o comportamento que é recompensado. Inconscientemente, tendemos a
aplicar esse comportamento na nossa vida profissional." Vejamos alguns dos casos
acima. Jamie cresceu numa casa em que a mãe era alcoólatra e o pai, workaholic.
Acabou aprendendo a depender apenas de si mesma. Jeff era um adolescente
gorducho, que decidiu entrar em forma para não ter que ouvir mais as gozações
dos coleguinhas, e acabou obcecado com sua aparência. Joe freqüentou escolas
públicas, em que bons alunos são geralmente ridicularizados pelos outros
estudantes, e aprendeu a usar sua inteligência como forma de defesa, com
comentários ferinos. Thatcher teve um pai econômico nas demonstrações de afeto,
que apenas se importava com as realizações da filha.
NAS ENTRELINHAS - Nossos pontos fortes são aqueles comportamentos que nos
garantiram, no passado, a sobrevivência, o carinho, os brinquedos, o direito de
assistir televisão até mais tarde. É só isso, então, somos programados pelas
experiências da infância? Não podemos desenvolver comportamentos na própria
carreira, com um chefe de primeiro emprego, por exemplo? "Sim, acho que sim. Eu
já vi isso acontecer. Aliás, acho que isso aconteceu comigo", diz Lois. "Eu tive
um primeiro chefe duríssimo. Eu o admirava muito e ele me ensinou com padrões
muito altos. Até que percebi, bastante tempo depois, que os padrões dele eram às
vezes exagerados. Quando eu me tornei uma chefe, minhas expectativas em relação
aos outros eram altas demais." O reflexo da infância na vida profissional pode
ser visto também na maneira como aturamos situações quase insuportáveis no
trabalho. "Se um chefe difícil se parece com um de seus pais ou com alguma outra
figura de autoridade da sua infância, é bem maior a possibilidade de que você
suporte a desmoralização que ele lhe impinge", diz Lois.
E como saber qual é o ponto em que nosso comportamento deixa de ser um motor da
nossa carreira e passa a ser um fardo? Não corremos o risco de abandonar nossos
pontos fortes cedo demais, antes de tirar o melhor proveito deles? "Não.
Deixe-me dizer uma coisa, e se você puder frise-a bem na sua reportagem: você
nunca vai abandonar as suas forças", diz Lois.
Certo, vamos frisar bem isso. "Você vai sempre manter as suas forças. O que nós
propomos é que você adicione novas técnicas ao seu repertório para
equilibrá-las. Seus pontos fortes vão sempre trabalhar bem para você, a não ser
que você dependa exclusivamente deles." Sobre o ponto em que você deve começar a
compensar os seus pontos fortes, é simples: no momento em que você percebe que
pode descarrilhar. Não é tão difícil de observar. Pode ser que você não esteja
mais sendo tão elogiado quanto antes, ou esteja perdendo os melhores projetos,
pode ser que o diretor não o convide para almoçar com a mesma freqüência, seu
último aumento pode ter sido menor do que a média da firma, ou você já não é
mais tão ouvido nas reuniões quanto costumava ser... Os colegas também costumam
enviar sinais. Ninguém é tão direto, mas você tem que estar atento para ler nas
entrelinhas, perceber as críticas. Especialmente se for o chefe que estiver
falando. "Uma minúscula indicação de que você podia ter feito um pouquinho
melhor em algum ponto, eu pegaria esse sinal e multiplicaria por dez", diz Lois.
"Você tem de saber que tudo o que o chefe falar para você é uma avaliação em
potencial."
Quando percebe algum problema desses, o que a maioria dos executivos faz é
trabalhar mais duro e dedicar-se mais ainda ao que sabe fazer bem, diz Lois. É o
que ela chama de aumentar o volume. Mas o seu ponto forte pode ser exatamente a
causa do problema e aumentar o volume só tende a piorar a situação. Segundo Lois,
há oito razões básicas por que executivos de sucesso descarrilham. Antes de
passar a elas, façamos uma ressalva. Nada substitui a competência técnica.
"Estamos falando para um universo de pessoas extremamente competentes, que já
provaram isso, mas que chegaram a um estágio em que apenas a sua capacidade
técnica não garante ascensão profissional", diz Lois. Se não é o seu caso,
desculpe-nos ter tomado o seu tempo até aqui, nenhum dos conselhos de Lois vai
servir muito. Se há alguma dúvida sobre a sua competência técnica, aperfeiçoe-se
antes de mais nada. E aí sim preste atenção às observações de Lois.
DIFERENTE NÃO, MELHOR - O primeiro dos perigos que podem fazê-lo
descarrilhar, segundo ela, é o menosprezo à importância das pessoas. Em seguida
vêm a inabilidade em trabalhar em grupo, a falta de cuidado com a sua imagem ou
comunicação, a insensibilidade à reação dos outros, dificuldade em lidar com a
autoridade, uma visão inadequada (estreita demais ou ampla demais), indiferença
à necessidade dos clientes e, finalmente, o trabalho em isolamento (sem contato
com pessoas do seu nível, dentro ou fora da empresa). Para cada um dos casos,
Lois aconselha técnicas específicas para acrescentar comportamentos ao
repertório do executivo. A palavra-chave é acrescentar. "Você não tem que mudar
o seu modo de agir, você tem que levantar a cabeça e ver que há outros modos
possíveis", diz Lois. "Eu não estou aconselhando ninguém a ser diferente, estou
falando em ser alguém melhor." Não se trata de adaptar-se às situações que
apareçam. "Adaptação é uma espécie de palavra média, dá para entender?
Adaptar-se é não levar o caso até o nível seguinte, é evitar o trabalho interno.
Adaptar-se é se adequar ao ambiente. Estou falando em tornar-se melhor."
Na maioria das vezes, as pessoas têm medo de mudar algum aspecto de seu
comportamento. O primeiro temor é de tornar-se menos eficiente. O segundo é de
que qualquer mínima mudança dê início a uma revolução na vida da pessoa. Não é o
caso. Em geral, Lois indica técnicas simples. Joe, por exemplo, aquele dos
comentários ferinos, foi aconselhado a desenvolver técnicas de ouvir as pessoas
(concentrar-se no que dizem, predispor-se a achar que algo de útil será
dito...). Outro conselho simples foi contar mentalmente até três antes de dar
qualquer resposta. O conteúdo pode ser basicamente o mesmo, mas o momento de
hesitação tira um pouco a impressão de que ele é uma metralhadora giratória
disparando ao menor ruído. Mais uma técnica simples: para alguém exageradamente
detalhista, que não está conseguindo cumprir prazos, um dos conselhos de Lois é
evitar tomar notas em reuniões, procurando concentrar-se no sentido geral da
discussão. Ou cortar o tempo que vai usar para dizer algo, de três minutos para
um, por exemplo, dando as informações mais relevantes e depois descendo aos
complementos, se houver interesse do ouvinte.
Trata-se disso, então? Técnicas, simplesmente? Dicas? De certo modo, sim. "Meu
método não é terapia, são técnicas. Qualidades que você pode acrescentar ao seu
repertório." O que Lois faz é abrir os olhos do executivo para comportamentos
alternativos. De certa forma, devolvê-lo aos limites do campo de jogo. "Os
limites mudam de companhia para companhia, de departamento para departamento, de
chefe para chefe." O descarrilhamento ocorre quando seus pontos fortes começam a
sair do campo de jogo. "Se alguém sai constantemente dos limites permitidos,
está com problemas. Pode estar falando demais, ou de menos, pode dar idéias
criativas demais para aquele ambiente, tudo isso são fronteiras. Por outro lado,
se alguém joga o jogo corporativo sempre dentro dos limites seguros, no meio do
campo, pode não estar agregando valor nenhum à companhia no longo prazo."
PARA A VIDA TODA - Do modo como Lois fala, parece que não há perda nenhuma.
Mas quando adotamos um comportamento alternativo não deixamos de lado, pelo
menos um pouco, um de nossos pontos fortes? Digamos que um jogador de futebol
seja o melhor corredor de todos, chegue sempre à linha de fundo, mas um belo dia
percebe que na primeira divisão, onde está jogando agora, seus marcadores
costumam antecipar o que ele vai fazer e roubar-lhe a bola com certa facilidade.
Ele resolve então começar a levantar a cabeça antes de iniciar sua corrida, para
descobrir algum companheiro desmarcado e uma alternativa de jogada. "Belo
exemplo", diz Lois. Mas nesses dois segundos que usa para levantar a cabeça ele
perde um bocado de sua rapidez... "Hmmm. Eu não entendo nada de futebol, então
você vai ter que me ajudar aqui", diz Lois. "Será verdade que no começo ele
perde um segundo ou dois, mas depois que domina melhor a técnica de olhar para
os outros antes de correr ele pode voltar a ser o mais rápido de todos? Eu
aconselho executivos ultradetalhistas, por exemplo, e mesmo deixando um pouco
para lá a obsessão com os detalhes eles ainda são muito mais cuidadosos do que
todo mundo..."
É isso que Lois quer dizer com acrescentar, em vez de trocar de comportamentos.
Com o passar do tempo, os novos comportamentos que levam a pequenos sucessos
tendem também a ser repetidos. É nesse sentido que o profissional torna-se,
segundo Lois, não diferente, mas melhor. Pode dar errado? Sim. Mudanças bruscas
têm risco muito maior. Além disso, nada feito bruscamente vai durar, diz a
consultora. O que se deve fazer é testar comportamentos novos aos poucos, e
sempre pedindo a opinião de colegas sobre sua evolução. É um trabalho para ser
feito a vida toda? "Bem, você está falando com uma psicoterapeuta. Sim, acho que
você tem que fazer isso a vida toda, porque você vai sempre encontrar pessoas
diferentes." Não basta aplicar as técnicas de comportamento, até porque qualquer
pessoa que reduza seu trabalho interno a um punhado de técnicas não vai
convencer ninguém. "Não acho que isso seja suficiente. Acho que cada um de nós
deve pensar por que age do modo como age. Deve perguntar: a) quem queria ou
precisava que eu agisse assim, no passado? b) como eu era recompensado? e c) o
que aconteceria se eu não agisse assim? Cada um de nós deve pensar: ‘eu não
tenho mais que agir como criança’. Não se trata de obedecer às regras da
família, não se trata mais de ser amado e alimentado e protegido. Trata-se de
ter sucesso."