No final da tarde de 30 de maio de 2006, um grupo de executivos da Embraer
acompanhava, tenso, uma ousada investida de sua maior concorrente, a americana
Gulfstream, líder mundial no mercado de jatos executivos. Daquela vez, não havia
clientes globais envolvidos. O plano de ataque da Gulfstream tinha como alvo um
grupo de 40 dos mais importantes engenheiros da Embraer. Para chegar até eles, a
empresa americana decidira publicar um anúncio em inglês no jornal Vale
Paraibano, com circulação na região de São José dos Campos, no interior de São
Paulo -- cidade onde está instalada a sede da Embraer. Naquela tarde,
representantes da Gulfstream realizavam na sala de convenções do Novotel seu
primeiro encontro com os engenheiros brasileiros. O objetivo era apresentar os
pacotes de salários e benefícios e as condições de trabalho que seriam
oferecidos aos profissionais selecionados. Enquanto os estrangeiros tentavam
seduzir os especialistas brasileiros, o time da Embraer, formado por
representantes das áreas jurídica e de recursos humanos, finalizava uma
estratégia para tentar evitar a debandada de uma parcela expressiva de seus
profissionais mais qualificados. A saída encontrada teve lances policialescos --
e um tanto quanto polêmicos. Com base numa brecha legal, a Embraer conseguiu que
um oficial de Justiça interrompesse a reunião no hotel. No dia seguinte, os
engenheiros da companhia brasileira tiveram de voltar ao trabalho como se nada
tivesse acontecido. "Nenhuma empresa estrangeira pode iniciar um processo de
seleção no país sem uma autorização oficial do Ministério do Trabalho, e a
Gulfstream não tinha essa autorização", diz Júlio Franco, vice-presidente de
desenvolvimento de negócios e pessoas da Embraer. "O movimento da concorrente
representou o risco de um desfalque perigoso para o andamento da companhia, num
momento em que estamos expandindo nossos negócios." A disputa entre as duas
empresas continua na Justiça -- e por ora a Embraer tem uma proteção judicial
que impede a Gulfstream de voltar a sondar seus funcionários em território
brasileiro, sob pena de uma multa de 2 milhões de reais diários caso ignore a
determinação.
A disputa entre a Embraer e a Gulfstream por esse grupo de 40 engenheiros
ilustra um fenômeno recente que cada vez mais desafia empresas -- e países -- de
todo o mundo: a busca e a manutenção dos melhores talentos. A percepção de que
os melhores profissionais são vitais para a prosperidade dos negócios não é
exatamente nova. Mas a realidade que agora se impõe soa assustadora. As empresas
não apenas precisam desesperadamente dos profissionais mais brilhantes --
aqueles capazes de inovar e criar valor com essas inovações -- como necessitam
de um número cada vez maior deles. Seria tudo mais fácil se talentos fossem
artigos abundantes. Mas, além de raros, muitas vezes eles estão escondidos em
lugares que as empresas simplesmente desconhecem. Em vez de estar sentados nos
bancos dos cursos de MBA, os talentos de que as companhias necessitam hoje podem
estar num laboratório de pesquisa na Rússia, numa fazenda no interior da
Argentina, numa universidade americana ou numa fábrica de aviões no interior do
Brasil. A guerra dos talentos, prevista num clássico estudo da consultoria
McKinsey no final da década de 90, atinge agora seu ápice com o aprofundamento
da globalização e o crescimento acelerado da economia mundial. O mercado de
talentos também vem sendo inflacionado com o avanço da tecnologia e a
necessidade cada vez maior de inovação, pontos que exigem profissionais com
novas habilidades. Hoje, há demanda por programadores de computador na Índia,
engenheiros aeronáuticos nos Estados Unidos, radiologistas na Europa,
especialistas em financeiras no Brasil. Não há tantos bons profissionais
disponíveis para todas as grandes empresas -- e, para piorar, muitos deles,
graças aos computadores, celulares e blackberries, vêm trocando a vida nas
empresas pelo trabalhado solo. Em seu livro O Mundo É Plano, o jornalista
americano Thomas Friedman mostra um exemplo real do que é essa nova era. Ele
atende pelo nome de Ken Green, é americano e dono de uma empresa especializada
em produzir vinhetas para comerciais de televisão. Green vive atormentado porque
ganhou inúmeros novos concorrentes, os freelancers -- profissionais que
trabalham em casa por opção e que podem fazer as mesmas coisas que são
produzidas numa grande empresa graças ao acesso à tecnologia.
Trata-se de uma mudança fantástica e angustiante. Nunca houve tamanho equilíbrio
de forças entre as corporações e os profissionais que nelas trabalham. O que
essa nova geração de trabalhadores conectados e globalizados deseja? Onde e como
as empresas podem encontrá-los -- já que eles estão dispersos pelo planeta e não
mais concentrados em meia dúzia de universidades americanas e européias de
primeira linha? Como retê-los? Uma pesquisa recente realizada pela consultoria
americana Manpower com 32 000 empresas em 19 países mostra que, em média, 30%
delas teriam contratado mais gente nos seis meses anteriores à enquete se
tivessem encontrado profissionais qualificados. Em países como Estados Unidos e
Japão, a situação é ainda mais dramática, e praticamente metade das companhias
-- 45% delas -- tinha vagas disponíveis por absoluta falta de gente capaz de
ocupá-las. Há previsões de que a escassez aumente nos próximos anos, à medida
que a geração atual de profissionais com uma carreira já estabelecida comece a
sair de cena. Estudos da consultoria Deloitte indicam que o número de executivos
que vão se aposentar nos próximos anos é gigantesco -- no setor automotivo, por
exemplo, 40% dos gestores que estavam na ativa em todo o mundo no início desta
década terão se aposentado até 2008. Além disso, o fortalecimento de economias
como a China exige que milhares de novos profissionais sejam despejados no
mercado a cada ano. Estimativas da McKinsey mostram que em, 2005, a China
contava com um número máximo de 5 000 executivos de primeira linha. Até 2020,
serão necessários pelo menos 75 000.
A própria McKinsey teve de se adaptar aos novos tempos. Apesar de ser uma das
primeiras escolhas para jovens talentos do mundo todo, a consultoria hoje
enfrenta a concorrência de competidores relativamente novos, como os fundos de
hedge e as empresas de private equity. Com o dinheiro farto que circula pelo
mundo, o mercado financeiro torna-se cada vez mais atraente. Para tentar driblar
a rarefação de cérebros, a McKinsey decidiu incluir outro tipo de alvo em seu
radar de contratação: cientistas. "Hoje, 20% dos 150 consultores do escritório
brasileiro são Ph.D.", afirma o brasileiro Vijay Gosula, ele próprio um Ph.D. em
física e um dos 15 sócios da McKinsey responsáveis por programas de atração e
retenção de talentos em todo o mundo. Recentemente, a consultoria também teve de
rever sua política de plano de carreira. Até pouco tempo atrás, qualquer jovem
analista recém-contratado obedecia ao seguinte roteiro: dois anos na
consultoria, um ano em outra empresa (normalmente cliente da McKinsey) e depois
um MBA. "Os jovens que chegam agora têm outras necessidades", diz Gosula. O
mineiro Igor Xavier Correia Lima é um representante típico dessa nova geração.
Aos 25 anos de idade, engenheiro mecânico formado pelo ITA, ele está afastado da
McKinsey desde maio passado, depois de ficar dois anos na empresa. Lima decidiu
trabalhar durante um ano no Colégio 7 de Setembro, escola tradicional de
Fortaleza, no Ceará. "É uma experiência diferente, que vai contribuir para minha
formação", diz ele. A McKinsey mantém contato regular com Lima e já avisou que
irá bancar seu curso de MBA no exterior assim que ele terminar a temporada no
Nordeste. "A empresa está fazendo todo o investimento possível para que depois
eu volte para lá", diz Lima.
A queda das barreiras geográficas na concorrência por profissionais qualificados
fica evidente num dos setores mais aquecidos mundialmente -- o de serviços
terceirizados de tecnologia. Tome o exemplo da Procwork, uma das maiores
consultorias de tecnologia brasileiras, com faturamento de 350 milhões de reais
em 2006. Em meados do ano passado, o carioca Luiz Carlos Felippe, fundador e
presidente da Procwork, perdeu dez de seus analistas para uma concorrente
canadense que nem sequer atua no Brasil. "Foi a primeira vez que ouvi falar na
tal empresa", diz Felippe. A busca por novos profissionais nessa área é tão
grande que empresas como a TCS, braço de tecnologia do grupo indiano Tata,
chegam a contratar engenheiros antes mesmo que eles se formem -- não como
estagiários, como é praxe em todas as grandes companhias, e sim como
funcionários. No ano passado, a subsidiária brasileira da TCS, uma associação da
Tata com a brasileira TBA, contratou 165 funcionários que ainda estavam na
universidade. Outros 150 começaram como contratados no dia 2 de janeiro deste
ano. "Foi a saída que encontramos. Hoje, só não crescemos mais porque falta
gente", diz Joaquim Rocha, diretor de recursos humanos da TCS. A carência de
gente qualificada em TI ameaça inclusive a Índia, que até pouco tempo atrás era
vista como uma fonte quase inesgotável de programadores de software. Como apenas
uma parcela de 10% da população jovem tem acesso a universidades, o país não
está conseguindo formar novos profissionais no ritmo que o mercado exige.
Analistas fazem previsões de que até 2010 mais de 500 000 vagas estarão abertas
em todo o mundo na área de terceirização de TI -- e não haverá gente qualificada
para ocupá-las. Um dos efeitos mais imediatos dessa insuficiência é a inflação
dos salários. Na Índia, os salários dos recém-formados aumentaram até 15%
recentemente -- o que, no longo prazo, pode significar diminuição da
competitividade global das empresas indianas.
Não apenas as companhias estão sendo obrigadas a reajustar os salários como cada
vez mais precisam atrelar a remuneração de seu pessoal a incentivos de longo
prazo, como plano de ações. "A relação entre empresas e funcionários hoje está
cada vez mais apoiada em entrega e premiação de resultado", diz Marcelo Ferrari,
diretor da consultoria especializada em recursos humanos Mercer. "Uma das manei
ras de manter os melhores é aumentar a parcela de bônus de longo prazo." Um
levantamento da consultoria mostra que, hoje, 55% das grandes empresas
instaladas no Brasil oferecem recompensa de longo prazo para o nível de
presidência. Há uma década eram apenas 35%. O tamanho da recompensa também
aumentou de quatro para seis salários anuais, em média, para esse nível
hierárquico (veja quadro na pág. 24). Nos Estados Unidos, essa solução está
sendo levada ao limite. No final de 2006, o Goldman Sachs anunciou que pagaria a
Lloyd Blankfein, seu presidente executivo e chairman, cerca de 54 milhões de
dólares em 2006 em bônus e opções de ações -- um recorde até mesmo para os
agressivos padrões de Wall Street. A explicação para tamanha generosidade é
matemática: sob o comando de Blankfein, o lucro do Goldman Sachs cresceu 70% no
ano passado, alcançando 9,5 bilhões de dólares, e o banco não tem nenhuma
intenção de ver seu precioso "ativo" bandear-se para outra instituição. Para um
banco de investimentos, a perda de um executivo importante, muitas vezes,
implica também a perda de clientes -- e o Goldman Sachs já aprendeu essa lição.
Em meados do ano passado, o italiano Corrado Varoli deixou a presidência da
instituição para a América Latina e abriu seu próprio negócio, um banco
especializado em fusões e aquisições. Embora trabalhe praticamente sozinho
(exatamente como no movimento descrito por Thomas Friedman), Varoli foi seguido
por pelo menos dois grandes clientes do Goldman Sachs.
Oferecer possibilidades reais de crescimento na carreira pode ser tão sedutor
para um talento-alvo quanto dinheiro. Em 2004, o paulista Luiz Henrique Didier,
de 34 anos, recebeu um convite do Itaú para trabalhar na Taií, financeira que o
grupo estava montando. "A oferta era de um salário não muito maior do que eu já
tinha", diz ele, que na época ocupava uma gerência de produtos no banco Ibi,
ligado à rede de varejo C&A. "O que me atraiu foi sobretudo o tamanho do desafio
e a visibilidade que eu teria caso tivesse sucesso." Por ser um profissional com
conhecimento ainda raro do mercado, desde que entrou no banco Didier foi
promovido duas vezes e seu salário dobrou. Hoje, ele é responsável por uma das
operações mais importantes da financeira, o funcionamento de 250 postos da Taií
na Lojas Americanas. A possibilidade de crescimento é também o motor de Cassiano
Hissnauer, diretor de suprimentos da Ambev para a América Latina. Funcionário da
empresa há uma década, Hissnauer é considerado um dos grandes talentos da
companhia. Já mudou de função nove vezes, é sócio desde 1999, recebe bônus
generosos e, por diversas vezes, foi despachado para treinamentos no exterior.
Há cerca de um ano, a belga Inbev, controladora da Ambev, promoveu uma palestra
com o guru Ram Charan, em Wharton, nos EUA, uma das mais prestigiadas escolas de
negócios do mundo, exclusivamente para 36 de seus executivos -- Hissnauer era um
deles. Com todos esses sinais de que pode avançar cada vez mais na companhia,
Hissnauer sonha alto. "Talvez chegue a presidente. Quem sabe?", pergunta em tom
de brincadeira.
As empresas que já entenderam as novas regras do jogo começam a tirar partido do
"achatamento" do mundo, do avanço da tecnologia e da especialização de seu
pessoal. O Fleury, um dos maiores centros de medicina diagnóstica do país, acaba
de fechar um contrato de prestação de serviços de telerradiologia com o
instituto radiológico Gaer, da cidade do Porto, em Portugal. A equipe de quase
100 médicos especialistas do Fleury receberá imagens de tomografias e
ressonâncias magnéticas realizadas na clínica portuguesa, analisará os dados e
enviará laudos ao cliente português -- que hoje enfrenta dificuldades em
contratar médicos locais. O contrato é resultado de uma forte política de
investimento em funcionários adotada pelo Fleury nos últimos anos. "Instalamos
conceitos como meritocracia, fomos buscar Ph.Ds. e estimulamos a inovação o
tempo todo", afirma o médico Mauro Figueiredo, presidente do Fleury. "Na última
década, não perdemos mais que dez médicos para a concorrência." E, para se
resguardar, nem foi preciso buscar proteção judicial.