Para entender melhor o modo como o brasileiro conduz sua carreira, a
professora Tania Casado, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade
da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Instituto de Administração
(FIA), buscou as respostas nas raízes da nossa cultura: a colonização
portuguesa.
Tania é a representante brasileira do The University Fellows International
Research Consortium, grupo de pesquisadores e professores que já entrevistou
presencialmente executivos de 42 países para formar sua base de dados. 'Estudei
Portugal, Brasil e Macau (colonização portuguesa), e Espanha, Argentina e
México. Quando o assunto é comportamento dos executivos, os países colonizados
apresentam resultados semelhantes aos de seu colonizador', diz. Será que narciso
vai se incomodar com aquilo que é espelho? Confira a seguir a entrevista que
Tania deu à VOCÊ S/A.
Quanto a herança da colonização influencia na formação dos valores da vida
corporativa?
Muito. Na pesquisa levantamos a hipótese de que existe uma convergência das
estratégias de ascensão profissional mais utilizadas em países de mesma
colonização, porque essas estratégias estão ligadas aos valores sociais, que são
influenciados pela herança cultural deixada em cada país, independentemente do
desempenho econômico das nações pesquisadas.
Então, dependendo do país colonizador os executivos terão perfis diferentes
na construção da carreira?
As diferenças aparecem principalmente na hora de partir para a ação na busca da
ascensão profissional. Os executivos de países de cultura anglogermânica e
europeus de cultura latina adotam uma estratégia organizacionalmente benéfica.
Esse perfil gosta de obedecer regras porque visa não só à própria carreira, mas
também quer entregar resultados para a empresa. O trabalho árduo, a participação
em programas de voluntariado empresarial, o desenvolvimento de boas relações de
trabalho, o bom desempenho numa tarefa executada e a disponibilidade para
realizar horas extras são exemplos desse tipo de estratégia.
Esses latinos somos nós?
Não. Somos latinos colonizados por Portugal e Espanha, mas não estamos na
Europa. E é aí que entram dois outros perfis: o autoindulgente e o destrutivo.
As estratégias autoindulgentes são usadas por executivos de países de
colonização portuguesa como Brasil e Macau. São os comportamentos favoráveis ao
próprio executivo — é o pensamento do 'eu primeiro', da esquiva às incertezas,
de baixo comprometimento com a igualdade e de pouca preocupação com a lealdade.
Se isso é bom ou ruim à organização, vai depender de como interpretam a
situação.
Como nós, brasileiros, fazemos isso no dia-a-dia corporativo?
Reforçando as idéias de pessoas poderosas, atribuindo culpa aos demais por erros
próprios, levando crédito por trabalhos alheios, controlando informações.
Isso é bem destrutivo, sim?
Não, porque há certa flexibilidade. Para o executivo autoindulgente as coisas
podem ser relativas, dependendo de sua conveniência. Já as estratégias
destrutivas estão relacionadas a comportamentos extremamente voltados à própria
pessoa e muitas vezes prejudicam os outros e a organização. Por exemplo:
falsificar dados no currículo, roubar documentos, idéias ou projetos e usar
equipamentos de escuta. Em algumas sociedades, essas estratégias podem até ser
vistas como comportamentos ilegais.
Em que países os executivos adotam mais as estratégias destrutivas?
No Leste Europeu, na América espanhola e na Espanha. Isso não quer dizer que os
profissionais de lá sejam pessoas destrutivas. É que, na hora de ir atrás de
ascender na carreira, eles podem chegar a adotar esses meios mais nocivos para
conseguir seus objetivos.
Em que os países de colonização portuguesa e espanhola se distinguem?
As duas colonizações foram de exploração, mas a Espanha conquistou a América de
forma mais assertiva, agressiva, militar. Os heróis do México e Argentina,
países que eu estudei, são militares e ainda hoje estão ligados à guerra.
COMPETIR NUM MERCADO GLOBAL IMPLICA ASSUMIR NOSSA RESPONSABILIDADE NO
TRABALHO
No Brasil houve alguma diferença?
Embora Portugal também tenha feito uma colonização de exploração, ele usou meios
indiretos, como o comércio e outras estratégias que faziam uso muito mais da
flexibilidade do que do confronto direto. A Coroa Portuguesa também fincou
raízes aqui com a ajuda do clero. Por isso somos assim: um povo mais emocional,
que trabalha de forma coletivista, própria do perfil autoindulgente. Então,
tentamos alcançar nossos objetivos de forma indireta, pouco assertiva, porque
para nós é difícil dizer diretamente o que queremos. Precisamos, sem dúvida, ser
mais assertivos.
Isso pode atrapalhar a carreira?
Hoje, para a carreira, é preciso ser mais focado, ter assertividade, ir direto
ao ponto. E ser assim está fora dos nossos valores culturais. No ambiente
corporativo isso se traduz em 'é preciso se preparar melhor, assumir mais as
responsabilidades, os papéis que têm de ser desempenhados'. Esse tão famoso
jeitinho brasileiro, o 'deixa comigo, na hora tudo dá certo, a gente dá um
jeito', acaba dando errado e prejudicando a atuação profissional. Mas o
executivo precisa ter claro que ele planta esse tipo de situação. A gente é
isso, sempre acha que na hora H vai resolver as coisas. É o jeitinho que nunca
dá jeito em nada.
Ser autoindulgente dificulta mudar de carreira, montar um plano B, até mesmo
ter determinados tipos de profissão?
Não. Vendo pelo lado positivo, esse perfil tem flexibilidade, transita bem pelas
várias profissões e áreas. Na realidade a questão é: se fosse mais assertivo,
alcançaria mais rapidamente seus objetivos e conseguiria mais resultados no
trabalho e na carreira. A flexibilidade faz parte do jeitinho brasileiro de ser,
que tem um lado bom para a carreira. É o sujeito que sabe contornar, que está
sempre 'na parada'.Mas às vezes, como não vai direto ao ponto, perde o timming
que as coisas têm para acontecer.
Além da autoindulgência, quais outros obstáculos fazem com que o brasileiro
se enrosque na hora de planejar e gerenciar bem a carreira?
Um deles é a dificuldade com a visão de longo prazo — outra característica
cultural nossa.Como é que o profissional pode se planejar se está trabalhando no
imediatismo? Os estudos do professor Geert Hofstede, que analisou diferenças
culturais em mais de 40 países, já mostraram nossa visão de curto prazo. Basta
olhar para o cenário nacional. Essas características são replicadas no ambiente
organizacional e na visão de nossa carreira. Como vamos competir num mundo
globalizado se não reconhecermos essas nossas características e as armadilhas
delas derivadas? Se não vemos o futuro?
Uma das características do perfil autoindulgente é não assumir
responsabilidades. Isso também prejudica a carreira...
O problema da autoindulgência fica mais fácil de entender quando se faz uma
analogia entre carreira e tecnologia, como o wireless. Hoje, a carreira está
balizada em três pontos: convergência, mobilidade e flexibilidade. O
profissional não pode estar preso a nada, mas tem de estar conectado a tudo.
Como é que ele vai construir uma carreira, transitar pelos departamentos, falar
com quem decide se não assume para si a responsabilidade pela própria vida
profissional?
Quando você fala em conexão, a primeira coisa que vem à mente é networking.
Por que o brasileiro tem resistência a criar, manter e usar uma rede de
relacionamentos?
A construção das redes de relacionamentos é um passo muito importante para
pensar e construir a carreira. E o que é conexão? São as redes. Eu preciso estar
sempre conectado, em dia com as conexões e elas precisam ser úteis para mim da
mesma forma que eu preciso ser útil para elas. Não se trata de relacionamento
afetivo, nem é uma rede de amigos, e às vezes a gente se relaciona como sendo
uma rede de amizade pessoal. Por isso, o brasileiro vê o networking com
preconceito, por pensar que essa é uma abordagem utilitarista das pessoas. Por
isso, se precisar acionar sua rede, vai fazer uma abordagem utilitarista, mas
raramente de forma clara, direta e objetiva. Ele vai rodear as pessoas e tentar
atingir seus objetivos rodeando, pelos meandros e pelos desvios.
Existe uma maneira diferente de encarar o networking?
Se você pensar que dará uma contrapartida em algum momento, já vai encarar o
networking de forma diferente. Acaba se tornando uma maneira menos
autoindulgente, mais focada, de assumir a carreira. Isso porque você não vai
abordar as pessoas como um 'coitadinho'. Não vai colocar a culpa no mercado, nem
no chefe por estar ali no papel de pedinte para se recolocar ou encontrar um
emprego melhor. Ao contrário, você vai entender que networking é uma via de mão
dupla: um dia você aciona, num outro é acionado, sem se sentir um oportunista.
Dá para mudar de perfil?
Mudar uma tradição de mais de 500 anos como apareceu nos resultados da pesquisa
de nosso grupo não é de uma hora para outra. O importante, vital para o nosso
futuro profissional e do nosso país, é saber que temos essas características e
que precisamos desenvolver comportamentos de aprimoramento de nossas ações. Ou
seja, usar a parte boa da nossa flexibilidade e cuidar para que a falta de
assertividade, de assumir efetivamente responsabilidades e nossa visão de curto
prazo não prejudiquem nossos objetivos.