EXAME acompanhou uma reunião de um fundo para avaliar o investimento milionário
em ações do laboratório Fleury; saiba o que aprender com os gestores
profissionais
Fleury: laboratório recebeu investimento milionário dos fundos da M SquareA
crise iniciada em 2008 trouxe à tona diversas incertezas que ainda pairam sobre
a economia global, mas também criou um consenso em torno da ideia de que é
impossível prever com precisão para onde vão os mercados financeiros. Muitos dos
autores que mais venderam livros de economia nos últimos anos são, na verdade,
teóricos da aleatoriedade. Em "A Lógica do Cisne Negro", o ex-operador de bolsa
Nassim Nicholas Taleb defende que eventos como o 11 de Setembro ou a pontuação
futura do índice Dow Jones não podem ser antevistos porque os seres humanos
possuem uma visão limitada e simplista dos fatos. Em "O Andar do Bêbado", o
físico Leonard Mlodinow escreve que a direção dos mercados financeiros seria tão
previsível quanto o próximo passo de um homem embriagado após uma noitada. Até
mesmo George Soros, um dos mais bem-sucedidos especuladores da história, afirma
que as bolsas não trabalham de forma lógica e tendem ao desequilíbrio. No livro
"O Novo Paradigma dos Mercados Financeiros", Soros defende o que ele chama de
"princípio da falibilidade radical" - ou seja, que os mercados estão sempre
fadados ao erro.
Como se tornou dominante a ideia de que muitos dos riscos associados ao
investimento em bolsa são mesmo imprevisíveis, entre os bons gestores de
fundos cresceu a importância de gerenciar ao menos os perigos perceptíveis que
se avizinham no horizonte. Para entender como funciona o trabalho desses
profissionais, o Portal EXAME acompanhou uma reunião da gestora brasileira de
recursos M Square, que administra 620 milhões de reais aplicados em fundos de
ações. A impressão é que ao menos entre os investidores profissionais, as lições
de Soros, Taleb e Mlodinow parecem já ter sido bem assimiladas. Na
reunião, cinco analistas avaliaram um investimento milionário em ações do
Fleury, o segundo maior laboratório de diagnósticos médicos do Brasil. Durante
as três horas de discussão, os membros da equipe buscaram motivos para não
investir nos papéis - e não o contrário. "A gente é mesmo cético por definição",
diz Mauricio Bittencourt, sócio-gestor dos fundos da M Square.
O que mais chama a atenção é a quantidade de informações apuradas e de
cenários discutidos. Nenhum analista emite opiniões a partir de "achismos". O
debate gira em torno de dados sobre o setor de saúde como um todo, o Fleury e as
pessoas que o dirigem, os riscos do negócio e o valor das ações. Para embasar as
decisões de investimento, mais de 50 pessoas foram entrevistadas, entre
diretores do Fleury, executivos dos concorrentes, funcionários e clientes dos
planos de saúde que contratam serviços laboratoriais, diretores da Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS), representantes de hospitais e consultores
da área de saúde, entre outros.
No esforço de tentar prever se uma ação vai para cima ou para baixo, nem
mesmo acontecimentos pouquíssimo prováveis ficam de fora do radar. Os analistas
debatem, por exemplo, se uma eventual fusão de todas as 300 Unimed do Brasil
poderia criar um plano de saúde com poder de fogo suficiente para impor a
redução nos preços das tarifas cobradas pelos laboratórios para 15 milhões de
usuários. Outra discussão envolve a probabilidade hoje também remota de que o
hospital Albert Einstein coloque em prática um plano agressivo de expansão de
sua rede laboratorial. A notícia seria particularmente negativa para o Fleury
porque o Einstein possui uma marca muito forte entre as classes A e B.
Primeiros passos
O trabalho dos analistas da M Square começou vários meses antes da reunião
acompanhada por EXAME. Informações vêm sendo coletadas desde a oferta inicial de
ações (IPO, na sigla em inglês) do Fleury, realizada em dezembro de 2009. Na
época, o fundo comprou uma fatia bem pequena de ações do laboratório com dois
objetivos: 1) Obrigar-se a estudar o caso de investimento da empresa que
estreava na bolsa; e 2) Tornar-se acionista e ganhar acesso ao corpo de
executivos responsáveis por dirigir o Fleury. As informações passadas pela área
de relacionamento com investidores da empresa, no entanto, servem apenas como
pontapé inicial. "Em todas as empresas que visitamos os caras sempre vão ter
explicações para tudo", diz Bittencourt. "Se o dado é frouxo, nosso trabalho é
consultar outras pessoas capazes de confirmá-lo ou negá-lo."
A principal vantagem competitiva do fundo consiste em sua tradição de
investimentos no setor de saúde. A M Square já deteve ou ainda possui ações da
Dasa, OdontoPrev, SulAmérica e Amil. Muitas das informações garimpadas no
passado são úteis para a análise das ações do Fleury. Além disso, os analistas
do fundo possuem os balanços divulgados antes de o laboratório se tornar uma
empresa aberta - na época do IPO, esses dados foram retirados do site oficial da
companhia e não estão mais à disposição dos investidores. Por último, há vários
anos os executivos do fundo alimentam diariamente um banco de dados com todas as
notícias sobre o setor de saúde publicadas em jornais e revistas de grande
circulação.
Todo esse esforço faz com que a M Square tenha condições de fazer uma análise
acurada do potencial de crescimento de empresas como o Fleury. "Dá para garantir
que temos mais informação que 99% do mercado", diz Marcelo Magalhães, chefe de
análise da M Square. "Sabendo mais que os outros investidores sobre determinada
empresa, podemos avaliar com maior precisão quando é hora de comprar ou vender
uma ação", diz Bittencourt.
Oportunidades
O dia a dia de um gestor de fundo consiste em avaliar os riscos e as
oportunidades envolvidos num investimento para se chegar ao valor justo para
determinada ação. Esse tipo de análise é feita e refeita o tempo todo, mesmo
quando as novas informações chegam em finais de semana ou feriados.
Semanalmente, a equipe da M Square também se reúne para avaliar com maior
profundidade um caso de investimento. Na reunião semanal acompanhada por EXAME,
os gestores não falaram em nenhum momento sobre fatos macroeconômicos que
estavam mexendo com o mercado, como a crise na Europa. Eles se concentraram em
avaliar primeiro o potencial do setor brasileiro de saúde como um todo e depois
partiram para a análise direta do Fleury.
O esperado crescimento dos gastos com saúde no Brasil consiste no principal
alicerce para a tese de investimentos. A penetração dos planos de saúde é
baixíssima no país quando comparada aos níveis de Estados Unidos e Europa. A
expectativa de criação de 2 milhões de empregos formais ao ano também deve
impulsionar os gastos com saúde - já que são as empresas que pagam para seus
funcionários 56% do total de planos comercializados no Brasil. Inovações
tecnológicas são vistas como outra fonte de aumento dos gastos com saúde, já que
a existência de um maior número de exames certamente elevará a demanda.
O esperado envelhecimento da população brasileira é encarado como um quarto
ponto favorável ao investimento. Por último, os analistas da M Square avaliam
que, após levantarem mais de 4 bilhões de reais em aberturas de capital nos
últimos anos, as empresas do setor de saúde estão prontas para um momento de
consolidação - importante para garantir escala e poder de fogo para reajustar
preços. Considerados todos esses fatores, os analistas do fundo concluem que é
possível que no Brasil aconteça algo bem parecido com o que foi visto nos EUA
entre 1999 e 2009. No período, o S&P, principal índice de ações americano,
acumulou uma queda de 9% enquanto que as principais empresas do setor de saúde
experimentaram uma valorização de três dígitos.
Riscos
Vários riscos a essa tese, no entanto, também foram identificados. Um deles é
a forte regulação do setor de saúde. Os laboratórios não estão no foco da ANS,
mas uma canetada do governo poderia afetar todos os planos de saúde e prejudicar
indiretamente a demanda pelos exames laboratoriais realizados pelo Fleury. Nesse
ponto, os analistas concluem que o setor de planos odontológicos é a melhor
forma de investir em saúde no Brasil devido aos sinais da ANS de que não deve
regular o mercado e também pelo maior potencial de crescimento. O segmento de
planos odontológicos é tão bem visto que as ações da OdontoPrev estão entre as
três maiores posições dos fundos da M Square - junto com Totvs e Lojas Renner.
Como principal risco para as ações do Fleury, no entanto, os analistas
enxergam a possibilidade de que a empresa, no afã de crescer, queime o caixa de
330 milhões de reais levantado no IPO com investimentos pouco rentáveis. O
laboratório poderia, por exemplo, comprar rivais como o Hemes Pardini, terceira
maior empresas de diagnósticos médicos do Brasil, com uma posição de liderança
em Minas Gerais. Pagar um preço muito alto para convencer os atuais donos do
Pardini a abrir mão do controle da empresa seria negativo para o desempenho dos
papéis em bolsa. Outra possibilidade analisada é o de a empresa abrir diversas
unidades em locais pouco interessantes. Principalmente na área de exames de
imagem, a expansão dos laboratórios exige capital intensivo. Uma simples máquina
chega a custar milhões de reais. Trata-se, portanto, de um investimento que deve
ser muito bem analisado previamente.
Na opinião da M Square, o Fleury deveria se concentrar em melhorar os
resultados das 24 empresas adquiridas na última década. A empresa consegue obter
resultados excepcionais com as marcas Fleury em São Paulo e Weinmann no Rio
Grande do Sul. Nos outros cinco estados onde atua, entretanto, o Fleury ainda
deixaria a desejar. Mesmo empresas adquiridas há muito tempo não apresentaram
até agora o resultado esperado. Nos últimos anos, o Fleury trocou executivos
dessas companhias, fechou unidades deficitárias, rescindiu contratos pouco
lucrativos, integrou sistemas e agora prepara a consolidação das marcas
compradas. As medidas fizeram com a M Square ficasse mais confiante em uma
reviravolta com as demais marcas do Fleury e com o cumprimento das metas de
crescimento para este ano. No entanto, por conhecerem os executivos da empresa
há pouco tempo, os analistas preferem esperar um pouco mais para ver se as
medidas funcionam. "Sabemos que eles são bons médicos, mas ainda não temos um
histórico suficiente para cravar que são bons executivos", diz o sócio-gestor
Mauricio Bittencourt.
Valor das ações
Somente após todas essas considerações, começa o trabalho de analisar o valor
justo para a empresa. Entre os dados avaliados, estão a relação entre o valor de
mercado e o lucro do Fleury e de seus concorrentes nacionais e estrangeiros, os
ativos que a empresa já possui, as unidades que serão abertas nos próximos anos,
um possível crescimento das margens após a reestruturação das outras marcas e
até potenciais aquisições. Conforme a tabela abaixo, o valor justo para a ação
ficaria entre 14 e 30 reais dependendo de quão bem-sucedido o Fleury será em
cada um desses quesitos.
"Entenda que esse é um bico maluco. A única coisa que a gente sabe é que os
cinco cenários estão errados", diz Bittencourt. O exercício, segundo ele, teria
apenas dois propósitos. O primeiro seria o de avaliar quanto o Fleury vale se
tudo der certo ou errado - e quando há bons pontos de entrada ou saída na bolsa.
O outro benefício do exercício é mostrar claramente quais fatores afetam o valor
da empresa. O fundo já possui um ponto de partida para fazer cálculos quando
notícias positivas ou negativas chegarem - e, dessa forma, fica mais preparado
para tomar decisões rápidas.
Após todos os cálculos, a conclusão da equipe da M Square é que as ações do
Fleury possuem um risco baixo de desvalorização. Os papéis poderiam ter uma
forte queda se a empresa se aventurar em uma aquisição cara. Outra fonte de
pressão para as cotações, ainda que momentânea, seria uma possível venda em
massa de papéis detidos por um único grande investidor - já que hoje as ações da
empresa estão muito concentradas nas mãos de poucos estrangeiros.
Para o fundo, o cenário mais provável, entretanto, aponta para uma
valorização lenta das ações ao longo dos próximos meses. Os papéis estariam, na
visão dos analistas, até mais baratos que os de sua principal concorrente na
bolsa brasileira, a Dasa. A equipe da M Square decide manter-se com 2% a 3% do
dinheiro do fundo investido no Fleury. Adquirida antes da reunião acompanhada
por EXAME, posições como essa costumam ser destinadas a empresas com reconhecido
potencial de crescimento, mas que ainda não inspiram muita convicção no gestor.
A equipe da M Square também decide marcar novas reuniões com gente que conhece o
Fleury por dentro e, posteriormente, voltará a avaliar eventuais aumentos ou
reduções na posição.
Desde setembro de 2007, quando foram criados, os fundos da M Square acumulam
uma valorização de 35,6% - contra uma alta de só 13% do Ibovespa. Os
gestores admitem ser impossível gerenciar todos os riscos inerentes
a um investimento em bolsa - principalmente aqueles relacionados ao cenário
externo - e atribuem os bons resultados à busca incessante por informações. "O
nosso trabalho envolve muito risco. Mas temos a honestidade intelectual de não
garantir para ninguém que vamos ganhar dinheiro", diz Bittencourt. A quem
planeja começar a comprar ações por conta própria, fica a lição sobre a
importância de levantar dados que o resto do mercado não tem para o
aprimoramento contínuo da tese de investimentos. "Bem ou mal, já sou analista de
investimentos e gestor há 18 anos. Minha única certeza é que daqui a três anos
estarei fazendo isso melhor", afirma Bittencourt.