É voz corrente que só os verdadeiros amigos dizem uns aos outros as verdades
que doem. Quem não é amigo - é só camarada, vizinho, companheiro, conhecido,
sócio, colega - mantém-se dentro da etiqueta e da formalidade e estes caminhos
não primam exatamente pela franqueza e sinceridade, uma vez que decorrem de
"papéis" e, portanto, são feitos de relações estereotipadas e quase sempre
superficiais. O amigo, não. O amigo não representa "papéis", nem precisa manter
aparências - ele pode falar verdades que, se vindas de outrem, poderiam machucar
ou ofender.
Por isso, em certas situações, o amigo é muitas vezes a alma-gêmea que nem o
parceiro afetivo consegue ser. É o nosso "alter-ego" e quando se manifesta
criticamente é para ajudar, para somar, para engrandecer e tornar o outro
melhor.
Faço essa introdução para justificar a posição crítica que expresso
regularmente em meus artigos com relação às áreas de Recursos Humanos das
empresas. Há pelo menos três décadas sou amigo e praticante de RH, daí sentir-me
à vontade para meter a colher, com a melhor das intenções. A colher de hoje é
amarga e por isso vou logo direto à questão.
O que é que se passa pela cabeça dos profissionais de Seleção de Pessoal -
geralmente colegas psicólogos - que os fazem tratar tão mal e de maneira tão
humilhante os candidatos a emprego?
Durante e após minhas palestras, entrevistas e seminários, tenho ouvido inúmeros
- eu disse inúmeros - depoimentos de pessoas que saíram tristes, magoadas,
ofendidas e revoltadas de um processo de seleção em algumas empresas, não por
não terem sido aprovadas, mas pela maneira como foram tratadas durante o
processo. Aliás, várias revistas têm publicado recentemente reportagens com as
mesmas queixas - a respeito das quais sou capaz de apostar que os dirigentes da
área ou da empresa não têm conhecimento - e que costumam ser:
- Indiferença, frieza e/ou arrogância no atendimento;
- Mau humor geral e falta de respeito do tipo: atrasos em relação à hora
marcada para início da entrevista, troca de nomes e de currículo
(entrevistar alguém tendo na mão o CV de outro candidato), interrupções
constantes durante a entrevista, seja por causa de telefonemas pessoais ou
devido a colegas que vêm "jogar conversa fora" - tudo isso na frente do
candidato!
- Entrevista mal planejada, apressada, incompleta, impessoal, sem um foco
definido, tornando-se muitas vezes uma repetição desnecessária dos dados que
já constam do currículo.
- Dinâmicas de Grupo constrangedoras, agressivas e/ou invasivas.
O assunto é sério e grave, sobretudo num momento em que, por um lado, as
empresas falam tanto de qualidade de vida, combate ao estresse, paz e
espiritualidade no trabalho, respeito a cidadania, proteção da auto-estima - e,
por outro, temos um mercado de trabalho recessivo, levando aos desempregados um
sentimento de desânimo, insegurança e preocupação.
O mau atendimento ao candidato se torna mais indesculpável quando praticado
por psicólogos, profissionais que, por formação e missão, devem exercitar a
empatia, a solidariedade, o respeito a individualidade e a compreensão dos
aspectos emocionais das pessoas em geral, e em particular daquelas que estão
desempregadas.
Certamente não quero, não devo e nem posso generalizar e as exceções estão aí
para justificar a regra. Há ótimos selecionadores. Mas a constância com que
tenho tomado conhecimento de maus tratos a candidatos me fazem acreditar que
muitos profissionais de Seleção ou não estão conseguindo administrar seus
próprios conflitos e dificuldades pessoais transferindo suas frustrações para o
candidato - ou estão necessitando adquirir ou desenvolver certas habilidades e
competências indispensáveis à função.
Numa sociedade que teima em julgar e atribuir poder, valor e importância à
pessoa a partir do seu status sócio-econômico, é fácil imaginar o imenso abismo
emocional do desempregado, seja ele um ex-"peão", uma ex-secretária, um
ex-vendedor ou um ex-executivo.
De qualquer forma, ele não passa de um "ex" para a sociedade e para o mercado
de trabalho, o que muitas vezes o leva a perder o respeito e a consideração (que
tinha antes) dos vizinhos, dos ex-colegas, amigos e até de alguns familiares.
Isso pode levar o profissional a mergulhar no terrível caos da baixa auto-estima
e tende a caminhar a passos largos para a tristeza e a melancolia, que podem
evoluir perigosamente para a depressão e finalmente o desespero.
É com esse estado de espírito que ele vai "pedir" emprego na área de Seleção
de uma empresa. Na verdade, o desempregado não vai pedir coisa nenhuma: ele vai,
isto sim, oferecer seu talento, suas habilidades e sua competência -
temporariamente não utilizada - para atender ou suprir uma necessidade da
empresa. Se há vagas, é porque a empresa tem necessidades a serem supridas.
Portanto, o candidato vem oferecer e trazer soluções - e só por isso já
merece ser tratado com toda a atenção e respeito do mundo. Não é preciso ter
pena do desempregado. É preciso apenas ter respeito pelo profissional e, sem
perder de vista esse respeito, estabelecer no processo seletivo uma negociação
ética e amistosa em que são trocadas informações corretas sobre competências,
perspectivas, compensações, etc.
Não questiono a competência técnica desse pessoal que faz Seleção. Mas,
sabe-se hoje, a competência não é feita apenas de elementos cognitivos, mas
também de comportamentais e atitudinais. Aliás, atualmente, a competência
comportamental está sendo muito mais solicitada e valorizada pelo mercado do que
a técnica. Muitos talentosos técnicos vêm se perdendo hoje por não dominarem
também a capacidade de manter relações harmoniosas e produtivas com os colegas.
Numa época que em os heróis solitários estão em acelerada extinção e se busca
cada vez mais o trabalho em equipe, é fundamental que os excessivamente
autoconfiantes não percam de vista os limites das boas relações e não enveredem
pelos tortuosos e desagradáveis caminhos do pedantismo, da boçalidade e da
arrogância.
Fala-se tanto em instalar paz no mundo e nas empresas e, no entanto, há
pessoas que conseguem produzir dor, ressentimento, angústia e raiva numa pequena
sala de Seleção de Pessoal, como se fôra ali um campo de batalha - com
vencedores e derrotados, mocinhos e vilões, iluminados e incompetentes.
É preciso que determinada fração do pessoal encarregado dos processos
seletivos nas empresas adquira a consciência de que já basta ao candidato a
frustração de eventualmente não conseguir a vaga disputada. Já é sofrimento
suficiente nessa cruzada de resgate da cidadania e da auto-estima que às vezes
dura anos.
Dispensam-se, pois, acréscimos doloridos. Um tratamento profissional e
amistoso e depois uma comunicação também profissional, com as explicações e
justificativas adequadas, pode amenizar enormemente essa frustração. Perde-se o
emprego mas mantém-se a dignidade e auto-estima.
Todo candidato precisa saber e sentir que a disputa será honesta e que uns
conseguirão a vaga, outros não - não porque valham menos ou sejam menos
competentes, mas simplesmente porque alguns perfis de candidatos, pela formação,
experiência ou conhecimentos, serão mais adequados às necessidades operacionais
ou administrativas de determinada vaga. Nada mais.
Concluindo: para as empresas e dirigentes de RH, eu recomendaria que fosse
feita uma reciclagem das competências daqueles que respondem pela seleção dos
seus profissionais. Não me refiro a nenhuma reciclagem técnica/operacional, mas
a um treinamento onde se fale mais de respeito humano, cidadania, empatia,
sentimentos, afetividade, generosidade, paz e solidariedade.
E especificamente para os profissionais de Seleção, a despeito da grande
amizade e carinho que eu lhes tenho - até devido à mesma formação universitária
-, quero lembrar uma frase antiga, portanto nada original, que inclusive já foi
slogan de alguma campanha social e que claramente tem um conteúdo ameaçador -
mas nem por isso deixa de ser realista: não faça do seu cargo de selecionador
uma arma; amanhã, a "vítima" pode ser você.
Em outras palavras, trabalhe de forma a que um dia você não precise passar
pela desconfortável experiência de provar do próprio remédio - ou veneno. Claro,
para aqueles a quem se aplicar nossas recomendações.