Durante minha formação como coach, uma das etapas do curso foi no
México, mais precisamente na cidade de Queréretaro, onde fiquei hospedado em um
hotel, o Hacienda Juríca, uma fazenda do Século XVIII. O local, além de muito
bonito, elegante e confortável, tem algo de nostálgico. Quando cheguei lá, tive
a sensação de que, a qualquer momento, seria envolvido em uma daquelas aventuras
do Zorro, Bernardo, o cavalo Tornado e o inesquecível Sargento Garcia.
Durante os dias lá passados, foi-me apresentado o trabalho de Dee Hoc -
lançado no ano 2000 pela Editora Cultrix - sobre as organizações caórdicas. Tema
complexo e cheio de reflexões novas, feitas a partir de sua experiência no
desenvolvimento e gestão do Grupo VISA. O tema é fascinante e propõe uma nova
visão de como as empresas devem ser geridas e como os relacionamentos
organizacionais devem se estabelecer.
Eu estava meio confuso. Depois de vários dias de estudo, os conceitos ainda
não tão bem sedimentados, as organizações caórdicas ainda permaneciam um
mistério. Até que aconteceu algo muito interessante.
O hotel foi construído em forma de vila, com três blocos de apartamentos e um
da administração, todos interligados, formando um imenso quadrado. Construção
tipicamente espanhola, revelando o inconfundível estilo das edificações da
América Latina do Século XVIII. No centro desse quadrado há um jardim de
inverno, em forma de uma pequena praça, com bancos e poltronas. É um local muito
aprazível onde, à tarde, se serve um chá delicioso.
Nos blocos, entre a laje e o telhado, há um pequeno espaço habitado por
pássaros que lá fizeram seus ninhos. A partir do alvorecer, lá pelas 6h, eles
saem dos ninhos e fazem uma revoada que dura algo em torno de uma hora. O
barulho que fazem com seus piados é imenso, e a quantidade de pássaros é enorme
para aquele espaço. Tal fenômeno se repete ao entardecer. É infalível. Todos os
dias a mesma coisa, de manhã e à tarde, desde séculos. Tanto, que os hóspedes
são avisados do evento como uma atração turística. O que faz um certo sentido,
pois não é incomum ser despertado por aquela revoada matinal.
Um dia, fui despertado pelos pássaros. Dia lindo, céu claro, temperatura
amena e os domínios das organizações caórdicas pela frente. Sem muita opção de
sono, desci para o jardim de inverno e pedi o café, ali mesmo. O vento matinal,
suave e úmido, acrescentava um sabor a mais ao desjejum. De repente, começou a
infalível revoada. Parei para contemplar. Era encantador.
Depois de algum tempo observando os pássaros, comecei a me perguntar se o que
eles faziam não era, em última análise, a aplicação dos princípios caórdicos que
Dee Hoc nos apresentava. Conclui que sim. Os pássaros organizam-se de forma
caórdica, senão vejamos:
* Caord, substantivo [português: caos (grego e latim chaos) Matéria
sem forma, primordial; suprema confusão; totalmente sem ordem nem organização;
Fileira, série, organização regular de acordo com regras].
1. Qualquer organismo, organização, comunidade ou sistema complexo, não-linear,
adaptável, que se organiza e se governa, seja ele físico, biológico ou social,
cujo comportamento combine harmoniosamente características de caos e ordem.
2. Uma entidade cujo comportamento exibe padrões e probabilidades observáveis e
que não são governados nem explicados pelas regras que governam ou explicam suas
partes constituintes.
* Caórdico, adjetivo [português: caos + ordem]
1. Comportamento de qualquer organismo, organização ou sistema autogovernado que
combine harmoniosamente características de ordem e caos.
2. Disposto de maneira a não ser dominado nem pelo caos nem pela ordem.
3. Característica dos princípios organizadores fundamentais da evolução e da
natureza.
Durante a revoada matinal, todos voam. Não há pássaro que não esteja voando
naquele momento. Não há ave que espere passar o tumulto para voar. Voam
simultaneamente; uns com os outros durante muito tempo. Depois, cada um segue
seu caminho. Mas, começam o dia juntos.
Aqui está o primeiro princípio caórdico: participação intensa. As
organizações caórdicas estimulam a participação. Todos atuam em tudo, participam
de tudo. Não há aquela ideia de departamento, seção, setor. Não há aquela
cultura resultante do "não fui contratado para isso" ou ainda "isso
não é tarefa minha". Enfim, todos estão juntos para contribuir com suas
competências, habilidades e atitudes na gestão organizacional.
No modelo tradicional de gestão, seja ele qual for, o máximo que se consegue
é que as pessoas façam tudo o que podem, mas não fazem o que devem. Tem-se uma
participação burocrática e equivocada. Na proposta caórdica, tudo é problema de
todos. O resultado é a potencialização do conhecimento agregado como forma de
gerar repertórios inéditos. Gerar a novidade. Em tempos em que se fala de
mudança acelerada e constante, essa ferramenta é a que tem proporcionado os
melhores resultados.
Da participação intensa deriva-se um subproduto: uma hierarquia enxuta. Dee
Hoc, dono de uma das maiores e mais complexas organizações do mundo, VISA Credit
Card, exemplifica, com sua organização, este princípio. Organizações complexas,
do tipo caórdico, possuem quatro níveis em toda a sua estrutura: direção
superior, gerências setoriais, coordenação de serviços e operações. Qualquer
coisa, além disso, é custo adicional.
A participação intensa cria compromissos com integração e resultados. Todos
voam. Mas não é só isso. Todos piam ao mesmo tempo - barulho ensurdecedor.
Deu-me a impressão de que se comunicam indicando a direção que pretendem tomar
no voo. Com isso, não se atropelam. Voam ao mesmo tempo, em um pequeno espaço e
não se colidem.
A comunicação entre eles é fundamental para que a coreografia do voo se
estabeleça com efetividade. Comunicação intensa, segundo princípio caórdico. As
organizações caórdicas estimulam a comunicação como uma ferramenta vital para o
trabalho. Todos estão interligados por redes conversacionais, eletrônicas ou
não.
Os temas do trabalho são difundidos por toda a empresa e todos os gestores
atuam na discussão deles. A atividade se realiza com muita conversa em rede.
Assim, não é de se estranhar que as organizações caórdicas utilizem amplamente a
tecnologia do coaching. Houve um tempo em que se dizia: "vamos
parar com a conversa e trabalhar". Hoje, a fala é outra: "vamos
conversar muito, porque há muito trabalho a ser feito".
A organização caórdica, ao estimular os espaços conversacionais, estimula a
integração das pessoas com o negócio corporativo. Mantém todos no mesmo foco. Os
pássaros não piam por piar, o fazem no sentido de dar direção ao que estão
fazendo. A regra parece ser a seguinte: quanto mais dialogamos, mais criamos a
possibilidade de um conhecimento agregado comum, maior do que o somatório das
partes envolvidas. É uma aplicação nova, mais efetiva, do conceito de sinergia.
Os pássaros voam e piam - participam e se comunicam com intensidade. Mas algo
me despertou a curiosidade ao observar por algum tempo aquela revoada. As aves
faziam acrobacias arrojadas e, a meu ver, perigosas. Será que isso não poderia
provocar algum acidente entre eles? Fui consultar o funcionário encarregado da
manutenção do jardim. Disse-me ele: "Senhor,desde quando esse hotel existe,
há mais de 200 anos, que os pássaros voam neste espaço com a mesma intensidade e
nunca um sequer foi ferido por outro". Que bela constatação.
O terceiro princípio caórdico - respeito mútuo. As organizações vivem em
decorrência da qualidade das relações que estabelecem. Muitas vezes, tais
relações são constituídas sem a menor negociação de expectativas. Pessoas são
colocadas para atuarem juntas, antes de se conversar sobre o que se espera delas
e sobre o seu papel no grupo. Decisões são tomadas sem que sejam discutidas com
os interessados, ou ouvidos os que podem colaborar com mais efetividade.
Gestores arvoram-se do fato de serem os proprietários e julgam-se donos da
verdade. Impõe-se o autoritarismo como forma de gestão, julgando-se que tal
prática seja a mais adequada para a gestão de negócios. A comunicação é falha e
a insegurança se instala. Os pássaros voam em uma perspectiva de respeito e
cuidado com o outro. Atuam como membros solidários de uma mesma comunidade. Em
sua revoada vêem uns aos outros como seres igualmente livres, legítimos,
autônomos e diferentes. Isso é respeito - não se tomar como referência ou como
modelo; antes, ter-se como colaborador de um empreendimento coletivo.
Respeito é o modo como eu qualifico aqueles com quem nos relacionamos. Não se
trata de uma alienação relacional, onde todos concordam com todos, nem se trata
de uma visão romântica da gestão, onde problemas não existem. Trata-se, isso
sim, de perceber a diferença como possibilidade e não como ameaça; de não ver o
diferente como inimigo; de entender que há vários prismas sobre uma mesma
questão. Respeito é agir e permitir agir em um espaço de conversas e geração de
possibilidades.
Que coisa linda ver os pássaros em revoada! Gostei tanto que passei a
observá-los diariamente. E todo dia era uma coreografia nova. Não me lembro de
vê-los fazendo o mesmo desenho duas vezes. A programação de voo se dava no
genérico, no estratégico, no macro. Individualmente cada ave tinha a liberdade
de criar. É assim que tem que ser. As organizações caórdicas abrem espaço para a
criatividade - quarto princípio. Problemas novos devem ser tratados com soluções
novas. Problemas velhos devem ser vistos por novas perspectivas. Em vez de
responder "porque não", há que se perguntar "por que não?". Isso faz toda a
diferença.
Empresas pouco criativas fazem o que todos fazem, não acrescentam
diferenciais competitivos em seu negócio, não agregam valor a produtos e
serviços, ficam a reboque do mercado. Companhias criativas apresentam novos
caminhos, novas soluções, novos produtos, novo jeito de trabalhar. Não é difícil
ver isto. Quanta coisa nova foi apresentada ao mercado nos últimos anos!
Coisas que nos pareciam absurdas foram incorporadas ao padrão de vida da
sociedade, e hoje nos parece impossível viver sem elas: Internet, celular,
telepizza, disk sushi, caixa eletrônico, cabeleireiro 24 horas, fila única,
filtro solar, produtos lights, diets e outras coisas mais.
Tudo isso foi fruto de uma ideia considerada absurdo em algum momento.
Organizações caórdicas estão abertas ao futuro pelo exercício criativo.
Ao final do dia os pássaros voltavam e tudo se repetia. A revoada vespertina
era preparatória para o merecido descanso. Mesmos princípios, coreografias
diferentes, confraternização. Mais uma jornada chega ao fim. Amanhã será um
novo, criativo e emocionante dia, uma excelente oportunidade de se viver. Esse é
o clima nas organizações caórdicas onde trabalho, prazer e dignidade fazem uma
nova oferta para um mundo em transformação. Reflitam sobre isso. Paz!