O filósofo francês Gilles Lipovetsky, especialista em hipermodernidade: 'É
preciso educar as pessoas para serem criadoras, e não só consumidoras'. Doutor
honoris causa pela Universidade Sherbrooke, do Canadá, e pela Nouvelle
Université Bulgare, da Bulgária, ele veio a São Paulo no fim de maio para o
lançamento de seu novo livro, A Sociedade da Decepção (Ed. Manole), no qual diz
que não é só quem está em busca de emprego que sofre de desilusão.
Muitos executivos estão decepcionados mesmo estando empregados, acometidos de
ceticismo e descontentamento. São os novos desiludidos das empresas, por causa
das relações no trabalho. Gilles comenta que a falta de reconhecimento aparece
em segundo lugar como risco para a saúde mental no trabalho, após as pressões
por eficiência e bons resultados. 'A escalada da decepção não é, única e
exclusivamente, conseqüência das demissões, das transferências de pessoal ou da
gestão causadora de angústia em relação às potencialidades de cada um. Tem
raízes também nos ideais individualistas de satisfação pessoal, veiculados em
grande escala pela sociedade hiperconsumista. 'Para ele, a sociedade da decepção
é uma espécie de vivência do efêmero,do descartável, típica dos nossos dias.
Pode-se afirmar que a sociedade da decepção, tratada em seu novo livro, tem como
uma de suas marcas a desilusão com o trabalho?
A decepção e a frustração fazem parte da natureza humana desde sempre. Elas
devem nos impulsionar a novas buscas. Quando estamos frustrados temos de
encontrar novas saídas para aquilo que está nos decepcionando. De certa maneira,
essa condição reoxigena a vida, porque se você se frustra com um objeto de
consumo, com uma pessoa ou mesmo com uma relação de trabalho, irá atrás de algo
para superar a frustração. Isso não é de hoje, da sociedade hiperconsumista.
O consumo pode trazer felicidade?
Sim, por meio do lazer, do turismo, da compra de um objeto desejado, como um
carro melhor ou uma nova decoração para a casa. Não tenho postura moralista
diante disso, nem julgo o consumo como um ato de materialismo que só teria
salvação por meio dos valores religiosos. As pessoas consomem porque estão
ansiosas, infelizes. Antes, elas iam à igreja, agora, vão ao shopping center.
Mas a sociedade continua decepcionada ainda que tenha acesso aos bens
tecnológicos, às grifes, a bons hotéis...
Existe mesmo um mal-estar. A gente percebe isso na obsessão que as mulheres têm
pelo corpo e os homens pelas marcas. Por exemplo, hoje as pessoas têm acesso a
uma alimentação de boa qualidade e variada. Mas o prazer da comida cria culpa
nas mulheres, porque o excesso de calorias pode engordá-las. Aí está instalado o
paradoxo entre prazer e decepção.
O salário, necessariamente, é uma fonte de decepção?
Ter um bom salário não é sinônimo de felicidade, porque novas necessidades são
geradas e as pessoas estão sempre correndo atrás para satisfazêlas. Quando um
profissional recebe aumento, a decepção surge assim que olha o carro do colega,
do chefe, e passa a achar que precisa de um carro melhor para ser feliz. Isso
não é trágico, mas me entristece porque empobrece a imaginação do ser humano. O
ato de consumir não me incomoda. O incômodo surge quando o consumo absorve toda
a existência.
O senhor acha que dá para reverter esse tipo de comportamento?
O consumo não será freado com posturas moralistas, nem com uma programação de
tevê de alto nível, por exemplo. Só 2% das pessoas se interessam por uma
programação melhor, o resto quer ver novelas e programas de sexo. Portanto, só
educando as pessoas desde pequenas é que poderemos reverter esse padrão. É
responsabilidade do pai e da mãe se dedicar à educação dos filhos, para que
tenham outras paixões. Incluo aí a responsabilidade dos políticos, que são, na
verdade, uma das maiores fontes de decepção do final do século 20 até os dias de
hoje. É preciso educar para ser criador, e não só consumidor.
A necessidade de se identificar com um grupo permanece tanto na vida pessoal
quanto na profissional?
Com certeza. As pessoas ainda querem se identificar umas com as outras, por isso
temos visto, infelizmente, o crescimento de microcomunidades violentas e do
terrorismo planetário. Antigamente tínhamos instituições sólidas, mais empregos,
ideologias pelas quais lutar. Tudo acabou se confundindo e se misturando e as
pessoas chegam ao século 21 em meio à desestruturação. Daí a importância da
família, do amor e de um grupo no qual se identifiquem. Mas a sociedade da
decepção não é a sociedade da depressão, pois existem muitos grupos se formando
baseados nos modelos de solidariedade.
Para o senhor, o amor tem papel importante na hipermodernidade. Por quê?
Novos valores estão sendo construídos a partir do amor. É no relacionamento com
o outro que podemos nos ver, nos sentir desejados e únicos na sociedade
hipermoderna e hiperconsumista. Queremos ser cada vez mais especiais. Mas a
decepção no campo amoroso tem sido uma experiência repetitiva porque buscamos
constantemente no outro aquilo que ele muitas vezes não pode nos dar - e quase
sempre nos negamos a enxergar e nos frustramos. As pessoas têm trocado com
freqüência de par para tentar encontrar no relacionamento seguinte tudo aquilo
que não encontrou no anterior. As relações parecem até descartáveis. Já a
amizade não frustra tanto, porque esperamos menos dos amigos do que dos amores.