“Lindo é o sol que não tem medo de morrer para nascer no outro dia.”
(Joyce Morgan)
Em minha adolescência, dos muitos esportes que pratiquei, um acertadamente pode
ser rotulado como “radical”: o pára-quedismo.
Não me perguntem como surgiu a idéia. Lembro-me apenas de seguir de carro pela
Rodovia Castelo Branco, aportando na cidade de Boituva, ainda hoje sede do
Centro Nacional de Pára-quedismo.
Dos exatos trinta saltos que realizei em minha breve
carreira,
com um acionamento de reserva registrado no sétimo salto, ficou a lembrança de
algumas sensações e um grande aprendizado: enfrentar e respeitar o medo.
Saltar é um elogio à adrenalina. Você a sente permeando seu sangue assim que
inicia a preparação, quando é “equipado” com roupas apropriadas, pára-quedas
postado nas costas, altímetro posicionado no peito ou no dorso da mão e óculos
de proteção.
Após uma sessão de briefing – uma simulação em terra do salto –,
adentra-se a aeronave, quase sempre um Cessna monomotor ou bimotor que singrará
os céus por 45 minutos até atingir a altitude adequada. Sentado na carenagem do
avião, pois os bancos são removidos, você acompanha vagarosamente a evolução do
ponteiro no altímetro, aprecia a paisagem e pensa na vida...
Mas o momento de maior tensão ocorre quando o piloto corta o motor da aeronave
que passa apenas a planar. A porta do pequeno avião é aberta, o vento invade com
veemência seu interior e você se dirige ao estribo, de onde mergulhará para o
nada, para a amplitude do horizonte, nadando através das nuvens, feito pássaro,
entre loopings e giros, durante intermináveis sessenta segundos.
Depois, há ainda o desafio de comandar a abertura do pára-quedas, contemplar os
arredores enquanto realiza manobras que colorem o firmamento, visualizar o alvo
e aterrissar, sempre em segurança, desde que se os procedimentos de pouso sejam
observados.
Recordo-me que durante a semana, quando trafegava por uma rodovia qualquer, ao
abrir a janela do carro e colocar o braço com a mão espalmada para fora sentindo
o vento forte a arrastá-lo, o êxtase percorria meu corpo, como se eu estivesse a
12 mil pés. Entretanto, com o passar do tempo, esta sensação se esvaiu. Afinal,
a gente se acostuma a tudo. E, tempos depois, diante da anunciada chegada de meu
primeiro filho, abdiquei do esporte, não por mim, mas em respeito a ele.
Uma semana após a tragédia do vôo 3054, retornei aos aeroportos. Mais do que o
caos administrativo, encontrei um clima de apreensão estampado nas feições de
muitos passageiros. Embora acidentes rodoviários sejam responsáveis pela perda
de mais de 35 mil brasileiros todos os anos, ninguém assume o volante de um
carro acreditando que encontrará uma colisão curvas adiante.
Analogamente, ao utilizar o transporte aéreo, afora o desconforto que acomete
alguns, em especial nas arremetidas, há uma certeza da chegada em segurança, até
porque estatisticamente são poucos os acidentes fatais em termos relativos.
Ocorre que primeiro começamos a recear as decolagens, porque um reverso pode
entrar em funcionamento inadvertidamente. Depois, passamos a temer o intermédio,
quando em velocidade de cruzeiro, por inépcia de controle do tráfego aéreo,
descobrimos que podemos colidir com outra aeronave em sentido contrário. Agora,
quando ao tocar o solo, todo o medo parecia ter razão para se
dissipar, aprendemos que o vôo só termina quando acaba, porque pode simplesmente
não frear.
O avião em que estou pousa. Quando a desaceleração é certa, vejo uma senhora ao
meu lado suspirar com alívio, fazendo o sinal da cruz. Vejo também alguns rostos
que guardam semblantes de pavor. Pessoas, projetos de vida inteiros, de todas as
idades, que por instantes poderiam partir sem semear ou mesmo iniciar a
colheita.
A fisiologia do medo remete à ação de neurotransmissores que
conduzem a duas perspectivas possíveis: fuga ou luta. Nenhuma delas é opção
plausível diante do sentimento circunstancial e transitório suscitado em pessoas
confinadas em uma cabine à mercê de manetes, freios, reversos, controladores,
companhias aéreas e governos.
Mas o fato é que vamos todos superar estes traumas. Simplesmente porque a gente
se acostuma a tudo nesta vida...