Carreira / Emprego - Carreira em alta, vida em risco
Aos 49 anos, o executivo Eduardo José Bernini nunca havia enfrentado graves
problemas de saúde. Até que o alarme soou durante uma reunião de diretoria da
empresa que ele comanda, o grupo AES do Brasil, subsidiária de uma das maiores
companhias americanas de energia. O episódio ocorreu no mês passado, na manhã de
uma segunda-feira. Por volta das 10 horas, Bernini sentiu um leve incômodo no
lado esquerdo do peito. Depois de um tempo, a dor foi se espalhando e o ambiente
da sala ficou sufocante. Assustado com os sintomas, ele saiu do encontro por
alguns minutos e dirigiu-se ao ambulatório da empresa para medir a pressão. Como
o aparelho não registrou nada que justificasse o mal-estar, voltou para a
reunião. Mas a sensação de incômodo físico só fez aumentar ao longo do dia. No
começo da tarde, a dor no braço se tornou insuportável e os dedos da mão
começaram a formigar. "Pensei que estava tendo um infarto", lembra ele. Bernini
acabou sendo internado num hospital em São Paulo, mas os exames mostraram que
não havia nada de errado com seu coração. Segundo o diagnóstico, todo o
desconforto físico havia sido provocado por uma forte pressão muscular na parte
superior da coluna. Ele havia sido vítima de estresse.
Um detalhe revelador: apesar do susto, Bernini ainda pediu uma autorização do
médico para viajar em seguida, pois na manhã do dia seguinte tinha um encontro
com analistas de mercado em Nova York. Obviamente, o pedido foi negado, com a
recomendação de repouso absoluto. "Acordei com remorso por não ter ido ao
compromisso", diz o executivo.
O caso do presidente do grupo AES Brasil e sua postura diante do problema estão
longe de representar uma exceção no ambiente empresarial. Para muitos
executivos, parece impossível conciliar a vida profissional com alguns cuidados
básicos com a saúde. Essas são as conclusões de um estudo inédito realizado pelo
Centro de Medicina Preventiva do Hospital Israelita Albert Einstein, em São
Paulo. Na pesquisa em questão, os médicos analisaram 400 check-ups realizados no
ano passado por presidentes e vice-presidentes de grandes companhias nacionais.
Foi o maior trabalho do gênero já realizado no país. Os resultados mostram um
panorama assustador.
Cerca de 70% dos executivos estão acima do peso, mais que o dobro da proporção
encontrada entre a população brasileira. O excesso de gordura relaciona-se a
outra questão grave, o sedentarismo, que aflige 62% dos presidentes e vices
incluídos no levantamento. Os problemas não param por aí. Dois em cada dez
executivos, em média, são hipertensos, apresentam acúmulo excessivo de gordura
no fígado e mantêm um consumo de álcool acima do razoável (mais de 14 latas de
cerveja numa semana, por exemplo). Na média, o grupo estudado também possui
níveis preocupantes de colesterol e triglicérides.
O trabalho dos especialistas trouxe à tona outra constatação perturbadora: a de
que subir na carreira faz mal à saúde. Parece uma idéia absurda, mas que fica
claramente demonstrada no estudo do Albert Einstein. Essa conclusão foi tirada
com base na comparação que os especialistas fizeram entre as avaliações médicas
dos presidentes e outros 3 600 check-ups semelhantes realizados no mesmo período
em diretores e gerentes de empresas brasileiras. Verifica-se que, quanto mais
alto o nível hierárquico, pior a saúde do executivo.
Um exemplo disso é a taxa de colesterol ruim, o LDL. Mais de 50% dos presidentes
e vices apresentam alto índice de LDL (acima de 130), uma proporção muito
superior à verificada nos demais grupos de executivos, de apenas 35%. Algo
semelhante ocorre com a questão do sedentarismo. Seis em cada dez presidentes
encontram-se nessa condição. Entre gerentes e executivos, a proporção do
problema é de cinco em dez.
Os presidentes também aparecem em primeiro lugar no quesito sobrepeso, com 70%,
ante uma taxa de 60% dos demais. O consumo de álcool entre presidentes e vices é
de 18%, ultrapassando gerentes e diretores (12%) e a média da população
brasileira, que gira em torno de 15%. Em suma, quanto mais avançam na carreira,
os executivos tendem a praticar menos esportes, a engordar, a beber mais e a
alimentar-se pior. Em termos de saúde, esse resultado é uma autêntica
bomba-relógio. "Essas pessoas precisam urgentemente rever seu estilo de vida,
sob o risco de desenvolver diabetes ou doenças cardiovasculares", afirma José
Antonio Maluf de Carvalho, coordenador do levantamento realizado pelo Einstein.
Seguramente, não é por falta de conhecimento das conseqüências desse
comportamento de risco que os executivos brasileiros chegam a um estágio
crítico. O que explicaria, então, esse autêntico contra-senso? Segundo os
especialistas, um dos fatores que mais contribuíram para o problema foi o
desenvolvimento de uma perigosa cultura corporativa que faz uma associação
direta entre sucesso profissional e falta de qualidade de vida. Nesse contexto,
trabalhar mais de 12 horas por dia é um fato comum entre executivos de nível
hierárquico mais alto. Assim como viajar muito, ter problemas conjugais, perder
a apresentação dos filhos na escola e não conseguir arrumar tempo para o lazer.
"Esse conjunto de sacrifícios é considerado uma espécie de pedágio inevitável a
ser pago em troca da ascensão na hierarquia corporativa", afirma Denys Monteiro,
vice-presidente da Fesa, multinacional de recrutamento de executivos.
Sinais preocupantes emitidos pelo corpo costumam ser solenemente ignorados,
sempre com a desculpa de que não há tempo disponível na agenda para deixar o
escritório e passar por um check-up. O presidente da Siemens do Brasil, Adilson
Primo, por exemplo, esteve ameaçado de sofrer um infarto por adiar uma visita ao
médico. Ele vinha sentindo muito cansaço ao caminhar, mas relutou durante
semanas até procurar um especialista. Em setembro de 2004, Primo finalmente
decidiu passar por um check-up. Dez dias depois, estava deitado na sala de
cirurgia do Hospital do Coração, em São Paulo, recebendo duas pontes mamárias e
uma radial. Depois do susto, Primo tratou de implementar algumas mudanças.
Abandonou o cigarro (fumava um maço por dia) e um cardiologista acompanha de
perto seu dia-a-dia. No escritório, porém, pouca coisa mudou. Aos 52 anos, ele
continua seguindo a rotina de antes: 14 horas de trabalho diário. "Infelizmente,
ainda não posso me dar ao luxo de viver aposentado no Caribe", afirma o
executivo.
A cultura de sacrifício da saúde em troca do sucesso profissional ganhou um
impulso ainda maior nos últimos anos em função de dois fenômenos: o aumento da
competitividade entre as empresas e a globalização. Hoje, um executivo tem de
tomar muito mais decisões que seus pares no passado - e em muito menos tempo.
São cada vez mais comuns, por exemplo, as teleconferências marcadas para as 4
horas da manhã porque um dos participantes está na China. Para piorar ainda mais
o cenário, a estrutura das empresas ficou mais enxuta e achatada, tornando o
ritmo de trabalho alucinante e elevando a níveis quase insuportáveis a carga de
estresse sobre os ombros dos profissionais. "Esse ambiente é altamente
desfavorável a uma mudança de atitude dos executivos com relação à saúde", diz o
cardiologista Leopoldo Piegas, do Hospital do Coração, em São Paulo.
Para os executivos nacionais, há ainda uma agravante: a tensão adicional
provocada por uma espécie de custo Brasil nos negócios. No dia-a-dia, ele
encontra sua tradução nas incertezas e dificuldades geradas pela tradicional
instabilidade do país. "Não por acaso, meus problemas de saúde apareceram
justamente quando a economia brasileira passava por um momento muito difícil,
com todo aquele problema de hiperinflação", afirma Raphael Levy, de 46 anos,
presidente da Israco, grupo que detém a representação de marcas como a Lansey
(bolsas de viagem) e a Fico (carteiras e mochilas).
O executivo ficou por quase dois anos numa cadeira de rodas, em conseqüência de
um problema de esclerose múltipla. Diagnosticada em 1986, quando Levy comandava
a marca de surfwear Ocean Pacific, a doença o deixou completamente paralisado da
cintura para baixo. À custa de medicação e intermináveis sessões de
fisioterapia, ele conseguiu recobrar os movimentos e hoje leva uma vida normal,
sem seqüelas da esclerose. Nos fins de semana, procura recarregar as baterias na
praia. "Ser empresário é um veneno para minha doença", diz Levy.
Até certo ponto, uma carga de estresse no ambiente profissional é tolerável e
até mesmo desejável. Ele funciona como um gatilho natural que provoca uma
descarga de adrenalina no organismo, deixando-o pronto para reagir diante de um
perigo ou desafio iminente. Transplantado para a rotina dos negócios, é a
centelha que alerta um executivo no momento de uma decisão importante. Quando
esse mecanismo é acionado em excesso, porém, ele começa a ter um efeito
negativo, gerando o que os especialistas chamam de estresse crônico.
"É quando a pessoa já acorda cansada, mesmo depois de uma longa noite de sono",
afirma Marine Mayer, responsável pelo departamento de psicologia do Albert
Einstein. No caso das mulheres que chegam ao comando das empresas, não raro
existe ainda um fator adicional de pressão, com o acúmulo das atividades do
escritório, a administração da casa e os cuidados com os filhos. Num primeiro
momento, o quadro de estresse crônico resulta em sintomas como cansaço,
irritabilidade e perda de concentração. Se não é tratado ou combatido, ele pode
gerar problemas mais sérios. Dentre o universo avaliado pelo Einstein, 40% dos
profissionais encontram-se nessa fronteira perigosa, correndo o risco de
desenvolver depressão ou outros distúrbios psicológicos.
Ante um quadro tão desolador, é tentador imaginar que a solução para o problema
possa vir de uma gradativa redução na carga de trabalho dos executivos. A má
notícia é que não há nenhum indício de que isso seja possível. Pelo menos até
onde a vista alcança, o que se vislumbra é um cenário de competitividade
crescente entre as empresas - e, portanto, entre as pessoas que nelas trabalham.
O desafio é conseguir conviver com uma dose elevada de tensão. Existem vários
exemplos de executivos que conseguem fugir desse círculo vicioso e mantêm uma
boa qualidade de vida. Disciplina é o principal ingrediente da receita. Boa
parte deles fixa metas em relação à manutenção ou à melhoria da forma física.
Uma experiência traumática também costuma funcionar como terapia de choque para
promover uma mudança de estilo de vida.
Foi o que ocorreu com Natal Garcia, de 53 anos, presidente da Caterpillar
Brasil, que enfrentou um câncer de intestino em 2004. Depois da retirada do
tumor, ele baixou de 80 para 50 horas semanais sua jornada de trabalho. "Após a
doença, reavaliei minhas prioridades", afirma ele.
Hoje em dia, muitas companhias nem esperam que essa iniciativa parta dos
profissionais. Preocupadas com a saúde de seus executivos, várias empresas têm
feito mais do que simplesmente exigir um check-up anual ou colocar uma academia
de ginástica à disposição dos funcionários. A Avon do Brasil é uma das que se
preocupam com essa questão. Desde 2004, a companhia dispõe de um corpo de
professores de educação física encarregados de promover caminhadas com os
funcionários após as refeições.
Sua concorrente na área de cosméticos, a Natura, montou há cinco anos em sua
fábrica em São Paulo uma espécie de hospital-dia, com mais de 30 especialistas.
Mais radical ainda foi à estratégia do Grupo Algar, que atua no segmento de
telecomunicações, agronegócio e entretenimento. A empresa de Uberlândia, em
Minas Gerais, conseguiu alterar o comportamento dos altos funcionários com um
sistema de bônus. Os executivos que alcançassem metas físicas específicas
ganhavam 20% mais no valor do contracheque. A política de incentivo vigorou
entre 2002 e 2004. Nesse período, o programa conseguiu reduzir de 44% para 28% o
número de executivos com sobrepeso.
Segundo a empresa, o programa pôde ser encerrado por ter cumprido seu papel de
disseminar uma cultura de cuidados com a saúde entre os funcionários. Note-se
que, em todas essas empresas, ninguém deixou de trabalhar muito. O ponto é que
elas conseguiram um ambiente em que essa carga de trabalho pôde ser conciliada
com uma maior preocupação com a saúde.
Esse investimento na qualidade de vida dos funcionários tem uma explicação:
gente mais saudável e feliz produz melhor. Uma pesquisa coordenada pela Deloitte
Touche Tohmatsu avaliou entre 2004 e 2005 os efeitos no caixa de 201 empresas
brasileiras que apostaram em ações para melhorar a qualidade de vida dos
funcionários. Os resultados são impressionantes. No período, a produtividade
aumentou 31%. "O equilíbrio físico e emocional da equipe é uma qualidade
indispensável para o sucesso de uma companhia, assim como nenhuma promoção ou
projeto profissional pode servir de pretexto para que um funcionário comece a
sacrificar a saúde", diz Elizabeth Amaral, diretora de desenvolvimento do Grupo
Algar. Infelizmente, essa idéia não é tão óbvia quanto parece para os executivos
brasileiros, como demonstram os resultados da pesquisa do Albert Einstein.
Referência:
Revista Exame
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