Ação civil pública promovida pelo Ministério Público em face da Caixa Econômica Federal para viabilizar saque de FGTS.
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DA .... VARA DA JUSTIÇA FEDERAL DA SUBSEÇÃO
DE ..... - SEÇÃO JUDICIÁRIA DO .....
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República adiante assinado, vem
respeitosamente ante Vossa Excelência, com apoio no art. 129, III, da
Constituição Federal, art. 6.º, VII, b, da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio
de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União) e, ainda, nas disposições
das Leis n.º 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) e n.º 8.078/90 (Código de
Defesa do Consumidor), subsidiado pelas informações constantes do inquérito
civil público em anexo, propor
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
em face de
Caixa Econômica Federal, empresa pública federal, com sede na Rua ....., n.º
....., Bairro ....., Cidade ....., Estado ....., pelos motivos de fato e de
direito a seguir aduzidos.
PRELIMINARMENTE
1. DA LEGITIMIDADE
Detém o Ministério Público legitimidade ativa para a presente propositura,
prevista no art. 129, III, da Constituição Federal. Deduzirá pedido para que a
Caixa Econômica altere a sistemática de liberação dos valores depositados nas
contas vinculadas, beneficiando os atuais e futuros integrantes do regime do
FGTS; alternativamente, o pedido objetiva obrigar a requerida a adotar o sistema
de conta única, beneficiando, da mesma forma, todos os trabalhadores
participantes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço-FGTS e também aqueles
que ainda virão a integrá-lo.
Logo se vê, pela dimensão do pedido, não se tratar in casu de direitos
individuais homogêneos, mas de autênticos interesses difusos, uma vez que os
seus titulares são em parte indeterminados.
Por outro lado, em relação aos trabalhadores já integrantes do regime, que podem
ser determinados, também não há que se falar em interesses individuais
homogêneos, mas em interesses coletivos stricto sensu. Os interesses individuais
homogêneos, na dicção do Código de Defesa do Consumidor, são aqueles resultantes
de origem comum. Têm geralmente origem fática e os seus titulares não guardam
entre si ou com a parte contrária relação jurídica outra que não aquela que
surge com o próprio evento danoso; ensejam normalmente a indenização dos seus
titulares em razão da responsabilidade civil, como seria o caso de expressivo
número de consumidores lesados pela utilização de um mesmo produto defeituoso.
Ora, no caso dos interesses coletivos stricto sensu, os titulares já têm, entre
si ou com a parte adversa, sempre de acordo com o CDC, uma relação jurídica
base, razão pela qual se aconselha o tratamento molecularizado (e não atomizado)
de suas demandas; a relação jurídica aqui antecede ao evento danoso.
O problema da indivisibilidade, que integra o conceito dos interesses e direitos
coletivos, vem sendo tratada com algum equívoco. Ela não deixa de existir pelo
fato de os interessados poderem, em determinado caso, valer-se de ações
individuais; ela é, na verdade, a possibilidade jurídica de uma determinada
questão, de um determinado pedido, em razão de sua identidade para toda a
categoria, ser tratado de forma coletiva. A ação coletiva, nesse caso, não
aparece como a única via possível de contestação judicial, pois ações
individuais podem ser admissíveis, mas surge como a via mais adequada,
levando-se em conta os princípios que inspiraram o advento desse tipo de ação no
cenário jurídico: prestação jurisdicional mais eficaz, mais abrangente,
igualdade de todos perante o ordenamento jurídico. É nesse sentido que Kazuo
Watanabe, um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor,
criticando os equívocos cometidos, afirma que a indivisibilidade depende
largamente do que o autor pede ao juiz. E, ainda:
"A determinação dos membros integrantes do grupo é, precisamente, a nota que
distingue os interesses ou direitos coletivos dos direitos difusos. Se o ato
atacado através da ação coletiva (reajuste de mensalidades) diz respeito a todos
os contratantes dos planos de saúde, globalmente considerados (não sendo
atacados um a um, em relação a cada um dos filiados, os reajustes exigidos pelas
empresas mantenedoras dos planos), a nota da indivisibilidade do bem jurídico e
bem assim a sua transindividualidade são inquestionáveis, pois basta a
procedência de uma única demanda para que todos os filiados dos planos de
assistência médica e hospitalar sejam coletivamente beneficiados."
"A tutela de interesses 'coletivos' tem sido tratada, por vezes, como tutela de
interesses 'individuais homogêneos', e a de interesses ou direitos 'coletivos',
que por definição legal são de natureza indivisível, tem sido limitada a um
determinado segmento geográfico da sociedade, com uma inadmissível atomização de
interesses ou direitos de natureza indivisível". [1]
No caso em comento, os interessados são os titulares de contas vinculadas ao
FGTS geridas pela requerida, ou seja, mantêm com ela uma relação jurídica base,
podendo-se falar propriamente em direitos coletivos stricto sensu. A questão
jurídica posta em causa é idêntica para todos, indivisível, e o pedido está
assim formulado, de maneira a beneficiar coletivamente o grupo.
Finalmente, ainda que se falasse, mesmo erroneamente, em interesses individuais
homogêneos, teriam eles inegável relevância social, critério que a Corte Suprema
tem utilizado para decidir da admissão ou não do MP à postulação desse tipo de
interesse. [2]
2. DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO
É possível o ajuizamento de ação civil pública no presente caso. Não deve ser
aplicado à questão o parágrafo único do art. 1° da Lei 7.347/85, com redação
dada pela Medida Provisória n° 2.180-35, de 24.08.2001. [3]
Com efeito, o dispositivo em questão quis vedar, nas matérias que cita, a
utilização da ação civil pública para a defesa dos chamados interesses
individuais homogêneos, o que se vê logo na dicção "cujos beneficiários podem
ser individualmente determinados". No caso em tela, como assinalado, faz-se a
defesa de interesses difusos, de titulares indeterminados ou, admita-se até, de
interesses coletivos stricto sensu: não se requer qualquer vantagem pecuniária
de caráter individual!
Por outro lado, padece de inconstitucionalidade o dispositivo citado. Apesar de
estar em vigor, em razão dos termos da Emenda Constitucional n° 32, ele é, como
dito, incompatível com a Constituição Federal.
Com efeito, a ação civil pública, instrumento processual criado pela Lei
7.347/85, foi albergada na Constituição Federal, no seu art. 129, III. O
tratamento coletivo das demandas, conhecido em outros países, bastando lembrar
das class actions americanas, é instrumento da democracia e de uma maior
efetividade do Estado de direito; esse princípio permite que a prestação
jurisdicional alcance e beneficie não só aqueles poucos que conseguem postular
individualmente no Judiciário, mas todos os que se encontrem em situação
idêntica, podendo-se dizer que se constitui também em modo de realização do
princípio da isonomia.
Ora, albergado pela Constituição, o princípio do tratamento coletivo das
demandas não comportou no Texto Maior quaisquer restrições, falando-se ali em
inquérito civil e ação civil pública para a defesa do meio ambiente, do
patrimônio público e social e de outros interesses difusos e coletivos. Essa
cláusula geral permitiu a utilização da ação civil pública, pelo Ministério
Público ou por outro legitimado, em quaisquer casos em que se verifique a
transindividualidade da demanda, não sendo necessário haver previsão legal
específica sobre a matéria versada, o que proporcionou ACP´s benfazejas em temas
como saúde, educação, habitação, comunicação social etc.
Não pode a lei, pois, restringir o princípio mencionado, sob pena de incorrer em
vício de inconstitucionalidade material, mormente em matérias de grande
relevância como tributos, contribuições e fundo de garantia. Diga-se de passagem
que a medida provisória questionada atendeu a preocupação contingente do governo
federal que, diante da decisão do STF que reconheceu o direito à correção dos
depósitos do fundo de garantia, passou a temer o ajuizamento de demandas
coletivas nessa matéria.
Por outro lado, é sabido que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, em relação
às ACP's versando matéria tributária, que o Ministério Público carece de
legitimidade para intentá-las, por entender tratar-se de direitos individuais
homogêneos [4], mas em momento algum estabeleceu que a via fosse inidônea a
veicular toda e qualquer pretensão daquela espécie, em se tratando de outros
legitimados legais. Também não asseverou o STF ser impossível ao Ministério
Público manejar a ação civil pública, mesmo em se tratando de matéria
tributária, quando se tratar de interesses difusos ou coletivos. Ora, a medida
provisória atacada não se identifica com as referidas decisões do Supremo. As
limitações que impõe vão muito mais além e se mostram incompatíveis com a Carta
Magna, pois: 1) proíbe a ação civil pública a quaisquer legitimados, nas
matérias que indica; 2) impede que o MP defenda, nessas matérias, interesses
difusos ou coletivos, o que não foi, em absoluto, impedido de fazer pelas
decisões do STF acima citadas.
Diga-se, igualmente, que os depósitos do Fundo de Garantia não têm natureza
tributária, consoante já decidiu o STF e que no presente caso, como já afirmado,
são defendidos interesses difusos e coletivos da sociedade e não apenas
interesses individuais homogêneos.
Por fim, é de se mencionar que o STF tem admitido que as ações civis públicas
deduzam pedido de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo,
desde que o façam incidenter tantum, como passo lógico necessário ao atendimento
do pedido principal. O STF, também, em jurisprudência já abundante, tem acatado
esse tipo de pedido em ACP, sempre que o pedido principal deduzido nessa ação
não possa ser obtido da mesma maneira em sede de ação direta de
inconstitucionalidade, não vendo aí usurpação de sua competência originária pelo
juiz de primeiro grau. [5]
A eventual declaração da inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 1° da
Lei 7.347/85, como requerido nesta ação, é exemplo rigoroso de declaração de
inconstitucionalidade incidenter tantum, pois, sendo o dispositivo de natureza
estritamente processual, a decisão judicial que o invalidar terá efeitos apenas
neste processo e não erga omnes, isto é, em outras ações civis públicas, como
seria o caso da decisão do STF numa ação direta de inconstitucionalidade.
DO MÉRITO
1.DA EXIGIBILIDADE DO SISTEMA DE CONTA ÚNICA
Com efeito, as Leis 5.107/66 e 7.839/89, que regularam o Fundo de Garantia antes
da vigente Lei 8.036/90, foram explícitas no sentido de que cada trabalhador
teria uma conta única de FGTS para os sucessivos vínculos empregatícios de sua
vida profissional. Senão, vejamos:
"Art. 5° (Lei 5.107). Verificando-se mudança de empresa a conta vinculada será
transferida para estabelecimento bancário de escolha do novo empregador.
Art. 10 (Lei 7.839)
(...)
3° Verificando-se mudança de emprego, até que venha a ser implementada a
centralização prevista no caput deste artigo, a conta vinculada será transferida
para o estabelecimento bancário da escolha do novo empregador."
Em relação à Lei atual, apesar de não encontrar aí dispositivo similar, até
porque, com a centralização pela CEF, não mais se cogitou de transferência da
conta vinculada entre instituições bancárias diversas, ela mantém a mesma
exigência, de uma conta única por trabalhador. Pode-se chegar facilmente a essa
constatação através da leitura do diploma, pela constante utilização da
expressão "a conta vinculada" e não "as contas vinculadas". Além do que, a
existência de contas múltiplas para cada trabalhador, como adiante se verá,
acarreta restrições indevidas e ilegais das hipóteses de movimentação.
Ainda para demonstrar que a Lei 8.036, como as anteriores, previu um sistema de
conta única por trabalhador, é conveniente analisar a alteração legislativa
trazida pela Lei 8.678/93. Os arts. 20 e 21 da Lei 8.036/90, em sua redação
original, previam:
"Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas
seguintes situações:
(...)
VIII - quando permanecer 3 (três) anos ininterruptos, a partir da vigência desta
lei, sem crédito de depósitos;
Art. 21. Após a centralização das contas de que trata o art. 12 desta lei, o
saldo da conta não individualizada e da conta vinculada sem depósito há mais de
5 (cinco) anos será incorporado ao patrimônio do FGTS, resguardado o direito do
beneficiário de reclamar, a qualquer tempo, a reposição do valor transferido,
mediante comprovação."
Em seguida, a Lei 8.678/93 alterou os dispositivos supracitados, dispondo o seu
art. 4°:
O inciso VIII do art. 20 e o art. 21 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990,
passam a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 20. ............
..............
VIII - quando o trabalhador permanecer três anos ininterruptos, a partir de 1º
de junho de 1990, fora do regime do FGTS, podendo o saque, neste caso, ser
efetuado a partir do mês de aniversário do titular da conta.
Art. 21. Os saldos das contas não individualizadas e das contas vinculadas que
se conservem ininterruptamente sem créditos de depósitos por mais de cinco anos,
a partir de 1º de junho de 1990, em razão de o seu titular ter estado fora do
regime do FGTS, serão incorporados ao patrimônio do fundo, resguardado o direito
do beneficiário reclamar, a qualquer tempo, a reposição do valor transferido.
Parágrafo único. O valor, quando reclamado, será pago ao trabalhador acrescido
da remuneração prevista no § 2º do art. 13 desta lei."
Vê-se que a alteração do art. 20, VIII, consistiu em precisar que não bastava o
simples transcurso do prazo de 3 anos, sem depósitos, para movimentar-se a conta
vinculada: era necessário que o trabalhador estivesse, pelo mesmo tempo, fora do
regime do FGTS. Por que a Lei 8.036 não fez tal precisão em sua redação
original? Porque ela é desnecessária no sistema de conta única! Havendo uma só
conta, para os sucessivos vínculos, esta somente ficará sem depósitos enquanto o
trabalhador não tiver se empregado novamente. Três anos ininterruptos sem
crédito de depósitos, na dicção original, correspondem a três anos fora do
regime do FGTS.
No entanto, em dissonância com a lei e com o funcionamento anterior do Fundo de
Garantia, a Caixa Econômica implantou um sistema de contas múltiplas por
trabalhador, abrindo uma conta de FGTS para cada vínculo empregatício.
Ensejou-se, assim, que algumas dessas contas - aquelas cujos saldos o
trabalhador não pudera sacar de imediato, em virtude da forma de desligamento do
emprego (ex.: pedido de demissão) - possibilitou-se, então, que tais contas
ficassem sem depósitos por muitos anos, mesmo que o trabalhador voltasse a se
empregar. Foi a razão que levou o legislador de 1993, a precisar as condições
para o saque no caso do art. 20, VIII, da multicitada Lei 8.036/90,
acrescentando que seria necessário estar "fora do regime do FGTS" pelo lapso de
três anos.
A necessidade da alteração legislativa, em 1993, em função da situação criada
pela implantação de várias contas por trabalhador, demonstra claramente que não
foi esse o sistema previsto pela Lei 8.036/90.
Observe-se, porém, que a alteração legislativa em questão, que veio corrigir as
conseqüências da implantação irregular de contas múltiplas, não implicou na
admissão desse sistema, inclusive porque, como se verá abaixo, ele acarreta
prejuízos aos trabalhadores, restringindo indevidamente as possibilidades de
movimentação de determinadas quantias do FGTS.
2. DOS PREJUÍZOS CAUSADOS PELO SISTEMA DE CONTAS MÚLTIPLAS
Analisemos a hipótese de movimentação prevista no art. 20, VIII, da Lei 8.036. É
sabido que, quando pede dispensa do emprego, o trabalhador não pode sacar logo
os depósitos do Fundo de Garantia. Só poderá fazê-lo, segundo a Caixa, se
permanecer três anos fora do regime do FGTS, isto é, caso não volte a se
empregar nesse período. Se vier a se empregar nesse prazo, não terá direito ao
saque, mesmo que a conta do vínculo anterior fique sem movimento por três anos
ou mais, só podendo obter esses valores "nas hipóteses de Aposentadoria; de
estar acometido de Neoplasia Maligna ou AIDS, o trabalhador ou seu dependente;
de ter idade igual ou superior a 70 anos, ou na aquisição de imóvel para moradia
própria", conforme informou a CEF a esta Procuradoria da República através do
ofício 1 -0650/CAIXA (fls. 07 e 08 dos autos anexos).
Com efeito, é o que se observa da Circular 278/2003, acostada às fls. 09 a 19
dos autos. Ela estabelece os valores que poderão ser levantados em cada hipótese
de saque prevista no art. 20 da Lei 8.036/90 (conferir os itens "valor" na
referida Circular). Em alguns deles, como nos casos já citados de aposentadoria,
neoplasia maligna, financiamento ou aquisição de moradia, a Caixa libera os
saldos de todas as contas que o trabalhador porventura titularizar, inclusive
daquelas cujos valores ele não pudera sacar em virtude da forma de desligamento
do respectivo vínculo. Em outros casos, muito mais corriqueiros, notadamente o
da despedida sem justa causa (art. 20, I), a Caixa não libera todas as contas,
mas somente o saldo daquela conta referente ao vínculo de que o trabalhador está
se desligando; além da despedida sem justa causa, são outras hipóteses em que
não há liberação do total de recursos: extinção da empresa (art. 20, II),
extinção normal do contrato a termo (art. 20, IX), suspensão total do trabalho
avulso por período igual ou superior a 90 dias (art. 20, X).
Assim, na forma disciplinada pela referida Circular, que é o mesmo procedimento
aplicado pela CEF desde que centralizou as contas, os saldos das contas que o
trabalhador não pôde sacar em virtude da forma de desligamento (como a justa
causa ou o pedido de demissão), somente poderão ser movimentados naquelas
hipóteses em que se prevê a liberação dos recursos de todas as contas
(aposentadoria, falecimento do trabalhador, câncer, aquisição da moradia etc).
Ora, caso o trabalhador tivesse uma conta única de FGTS, suas possibilidades de
sacar essas quantias seriam evidentemente maiores! Os depósitos anteriores, a
cujo saque não tivera direito, somar-se-iam àqueles das relações de emprego
subseqüentes e poderiam ser obtidos, além das hipóteses citadas no parágrafo
anterior, sempre que sobreviesse ao trabalhador uma dispensa sem justa causa
(art. 20, I, da Lei 8.036/90) ou ainda outras hipóteses de previstas no art. 20,
II, IX e X. Esse era o funcionamento do Fundo sob a égide das já citadas Leis
5.107/66 e 7.839/89.
A conclusão do parágrafo anterior se mostra mesmo mais consentânea com a
natureza do Fundo. Os recursos do FGTS são de propriedade dos trabalhadores e
objetivam socorrê-los no desemprego, entre outras hipóteses. Quando a Lei
8.036/90, no seu art. 20, I, assevera que "a conta vinculada do trabalhador no
FGTS" poderá ser movimentada em caso de despedida sem justa causa, é claro que
dispôs no sentido de que todos os recursos de que o trabalhador dispuser no
Fundo poderão ser movimentados. Não faria sentido que, numa situação de
desemprego, necessitando dos recursos, o trabalhador só pudesse movimentar uma
parte deles, ficando o restante para a aposentadoria.
Como já dito, a requerida deu a interpretação contida no parágrafo anterior, no
sentido da liberação total dos recursos, em várias hipóteses do multicitado
artigo 20. Pode-se dizer que nos casos de aposentadoria e falecimento isso seria
uma imposição lógica. E nos outros, como a aquisição de moradia própria? Por que
não liberar, também nesses casos, apenas parte dos recursos, aqueles depositados
na última conta, reservando o restante para a aposentadoria? O absurdo de tal
raciocínio, nessas hipóteses, ilustra sua inadequação também para as demais,
como aquela mais comum da despedida sem justa causa(art. 20, I). Isso porque a
Lei 8.036/90 não privilegiou qualquer hipótese, sendo a verificação de qualquer
delas bastante para ensejar a liberação de todos os valores que por acaso o
trabalhador possuir no FGTS.
3. DA CORREÇÃO DA DISTORÇÃO
Pois bem, a correção do problema seria a implantação do sistema de conta única,
na forma acima explicitada, para os atuais e futuros integrantes do regime do
FGTS. Contudo, a implantação da conta única poderá se mostrar custosa, em termos
de tempo e dinheiro.
Uma alternativa à implantação do sistema de conta única, que nos parece
suficiente e, por ser mais rápida e menos custosa, é aquela que adotaremos como
pedido principal, é a determinação judicial para que, também nas hipóteses
citadas do art. 20, I, II, IX e X, a requerida libere os saldos de todas as
contas vinculadas em nome do titular e não apenas da conta referente ao último
vínculo.
Assim, serão obviadas as conseqüências ilegais da existência de múltiplas
contas, a saber, a restrição das possibilidades de saque de determinadas
quantias. Os recursos do trabalhador no Fundo de Garantia passarão a ser
considerados de forma global, em todas as hipóteses de saque previstas no art.
20 da Lei 8.036/90, exatamente como se ele possuísse uma única conta vinculada
para os seus sucessivos vínculos.
Por outro lado, ainda que não se extraísse da lei a obrigatoriedade da conta
única, tem-se que em qualquer hipótese de movimentação prevista no art. 20 da
Lei 8.036/90 deve ser liberada a totalidade dos recursos que o trabalhador
possuir no Fundo, a teor das considerações feitas nos parágrafos 30 e 31 supra
que, a par das demais, devem ser tomadas como causa de pedir autônoma da
presente ação.
4. DOS EFEITOS NACIONAIS DA LIMINAR E DA SENTENÇA
A sentença em ação civil pública, em razão da própria natureza dessa ação, deve
produzir efeitos erga omnes ou ultra partes, nos termos do artigo 103 do Código
de Defesa do Consumidor.
A razão mesma de ser da ação civil pública é beneficiar todas as pessoas que
estejam na mesma situação, rompendo com o individualismo do processo civil
clássico. Recentes alterações legislativas, notadamente a Lei 9.494/97, que
alterou o artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, objetivaram desfigurar a ação
civil pública, atingindo-a na sua própria natureza e ferindo, assim, a
disposição constitucional que autorizou tal demanda coletiva (art. 129, III).
Sabe-se que a nova redação do art. 16 restringe os efeitos da coisa julgada ao
território de competência do órgão judicial prolator.
Confundiram-se, assim, dois institutos distintos, quais sejam, a competência do
órgão judicial e a sua jurisdição. Todo juiz tem competência territorial
delimitada, que o habilita a conhecer apenas de determinadas lides, mas sua
jurisdição, quer dizer, a validade de suas decisões tem indiscutivelmente
abrangência nacional. Um divórcio prolatado em Aracaju tem, à evidência,
validade em todo o território nacional e mesmo, observadas as regras do direito
internacional privado, no âmbito internacional.
Na ação civil pública, a competência define-se pelo local do dano, que no
presente caso abrange todo o país, inclusive o Estado de .............., cujos
juízes federais se tornam competentes para a demanda. Os efeitos da decisão,
contudo, são ditados pela lide posta em juízo, devendo alcançar todos os
titulares dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos em causa;
ditam-se esses efeitos também pela pessoa do réu, cujas obrigações não podem ser
repartidas em tantas partes quanto forem as comarcas existentes no país. O
contrário significaria grave afronta ao princípio constitucional da isonomia.
Nesse sentido, já decidiram os tribunais:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSO CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. EFICÁCIA TERRITORIAL DE
MEDIDA LIMINAR CONCEDIDA EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INSTRUÇÃO NORMATIVA/INSS
nº 57. IMPOSTO DE RENDA.
1. A eficácia de liminar concedida em sede de ação civil pública é erga omnes,
tendo abrangência em todo o território nacional.
2. A nova redação dada ao art. 16 da Lei da Ação Civil Pública pela MP 1570-5
(posteriormente convertida na Lei nº 9.494/97), para restringir a eficácia aos
limites da competência territorial do órgão prolator, é de flagrante
inconstitucionalidade, em afronta os princípios da razoabilidade,
proporcionalidade e da isonomia, pois desmantela o principal intuito de uma
decisão coletiva - a eficácia erga omnes irrestrita.
3. Não constitui critério determinante da extensão da eficácia da liminar na
ação civil pública a competência territorial do juízo, mas a amplitude e a
indivisibilidade do dano que se pretende evitar.
4. Por força do art. 21 da LACP e do art. 90 do CDC, incide, na hipótese, o art.
103 do Código de Defesa do Consumidor.
5. (...)
6.Precedente desta Turma (AI nº 2002.04.01.008635-0/RS, Rel. Des. Federal Paulo
Afonso Brum Vaz, DJU de 02/10/2002).
7.Agravo de instrumento provido. (AG nº 2002.04.01.0223778/RS, Rel. Juiz A A
Ramos de Oliveira, DJU de 26/02/2003)
Por fim, deve-se insistir, no mesmo sentido da lúcida decisão citada, que a
alteração do art. 16 da LACP, ainda que constitucional fosse, restou inócua.
Isso porque a Lei 9.494/97 não alterou o já referido art. 103 do Código de
Defesa do Consumidor, que dispõe sobre os efeitos erga omnes e ultra partes das
sentenças e, como sabido, aplica-se, por força do art. 117 do mesmo CDC, a todas
as ações civis públicas e não somente àquelas versando relação de consumo.
DOS PEDIDOS
ANTE TODO O EXPOSTO, requer o Ministério Público Federal:
I) Liminarmente, conceda-se a medida prevista no art. 12 da Lei 7.347/85,
determinando-se à requerida que, também nas hipóteses do art. 20, I, II, IX e X,
da Lei 8.036/90, libere os saldos de todas as contas vinculadas em nome do
titular e não apenas da conta relativa ao último vínculo;
II) Cite-se a requerida para apresentar contestação, no prazo de 15 dias, sob
pena de revelia;
III) Declare-se, se Vossa Excelência entender necessário, inclusive para o
deferimento da liminar, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do parágrafo
único do art. 1° da Lei 7.347/85, com a redação dada pela Medida Provisória n°
2.180-35, de 24.08.2001;
IV) Por fim, por sentença, julgue-se procedente o pleito autoral, condenando-se
a requerida à obrigação de fazer consistente em, nas hipóteses de movimentação
do art. 20, I, II, IX e X, da Lei 8.036/90, liberar os saldos de todas as contas
vinculadas em nome do titular, e não apenas da conta relativa ao último vínculo;
V) Alternativamente, por sentença, julgue-se procedente o pleito autoral,
condenando-se a requerida à obrigação de fazer consistente em, no prazo máximo
de 3 (três) meses a contar da sentença, adotar o regime de conta única por
trabalhador, como explicitado no corpo da presente petição, para os atuais e
futuros integrantes do regime do FGTS, inclusive reunindo os depósitos das
diversas contas eventualmente titularizadas por um mesmo trabalhador em sua
conta atual ou mais recente;
VI) Imponha-se multa diária pelo eventual descumprimento da liminar ou da
sentença, aferido que seja de qualquer maneira, em valor capaz de dissuadi-lo,
levando-se em conta o caráter multitudinário do feito, destinando-se os valores
ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos-FDDD, criado pelo Decreto 1306/94;
VII) Finalmente, pelas razões expostas, confira-se abrangência nacional às
decisões provisórias e definitivas exaradas no presente processo.
Dá-se à causa o valor de R$ .......
Nesses Termos,
Pede Deferimento.
[Local], [dia] de [mês] de [ano].
[Assinatura do Advogado]
[Número de Inscrição na OAB]