A automedicação é uma prática bastante difundida não apenas no Brasil, mas
também em outros países. Em alguns países, com sistema de saúde pouco
estruturado, a ida à farmácia representa a primeira opção procurada para
resolver um problema de saúde, e a maior parte dos medicamentos consumidos pela
população é vendida sem receita médica. Contudo, mesmo na maioria dos países
industrializados, vários medicamentos de uso mais simples e comum estão
disponíveis em farmácias, drogarias ou supermercados, e podem ser obtidos sem
necessidade de receita médica (analgésicos, antitérmicos, etc).
Debate-se se um certo nível de automedicação seria desejável, pois
contribuiria para reduzir a utilização desnecessária de serviços de saúde.
Afinal, dos 160 milhões de brasileiros, 120 não têm convênios para assistência à
saúde.
A decisão de levar um medicamento da palma da mão ao estômago é exclusiva do
paciente. A responsabilidade de fazê-lo depende, no entanto, de haver ou não
respaldo dado pela opinião do médico ou de outro profissional de saúde.
Para encurtar os caminhos para a obtenção do alívio dos incômodos que o
afligem, em inúmeras ocasiões, diante de quaisquer sintomas, especialmente os
mais comuns como aqueles decorrentes de viroses banais, o brasileiro se vê, de
pronto, impulsionado a utilizar os medicamentos populares para gripe, febre, dor
de garganta, etc; ou a procurar inicialmente orientação leiga, seja dos amigos
íntimos ou parentes mais experientes ou até mesmo do farmacêutico amigo, à busca
de solução medicamentosa ("vou lá na farmácia do Sr. Paulo para tomar uma
injeção para gripe"). A mídia televisiva e vários outros meios de comunicação e
propaganda como o rádio ou "outdoors" insistem com seus apelos a estimular a
todos a adotar tal postura, inserindo no final da propaganda a sua tradicional
frase "persistindo os sintomas um médico deve ser consultado", como se
isso os isentasse de toda e qualquer responsabilidade. Antes esta advertência do
que nenhuma.
No Brasil, embora haja regulamentação da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA) para a venda e propaganda de medicamentos que possam ser
adquiridos sem prescrição médica, não há regulamentação nem orientação para
aqueles que os utilizam. O fato de se poder adquirir um medicamento sem
prescrição não permite o indivíduo fazer uso indevido do mesmo, isto é, usá-lo
por indicação própria, na dose que lhe convém e na hora que achar conveniente.
Dados europeus indicam que, em média, 5,6 pessoas por farmácia e por semana
fazem uso indevido de algum tipo de medicamento.
Em nosso país, a extensão da automedicação não é conhecida com precisão, mas
apenas em caráter anedótico ou por meio de levantamentos parciais e limitados. A
Pesquisa por Amostragem Domiciliar de 1998 do IBGE oferece alguns elementos de
informação. Entre as pessoas que procuraram atendimento de saúde, cerca de 14%
adquiriram medicamentos sem receita médica; percentual que parece muito
subestimado, talvez em função da pesquisa não ter sido desenhada com a
finalidade de avaliar a automedicação.
As razões pelas quais as pessoas se automedicam são inúmeras. A propaganda
desenfreada e massiva de determinados medicamentos contrasta com as tímidas
campanhas que tentam esclarecer os perigos da automedicação. A dificuldade e o
custo de se conseguir uma opinião médica, a limitação do poder prescritivo,
restrito a poucos profissionais de saúde, o desespero e a angústia desencadeados
por sintomas ou pela possibilidade de se adquirir uma doença, informações sobre
medicamentos obtidos à boca pequena, na internet ou em outros meios de
comunicação, a falta de regulamentação e fiscalização daqueles que vendem e a
falta de programas educativos sobre os efeitos muitas vezes irreparáveis da
automedicação, são alguns dos motivos que levam as pessoas a utilizarem
medicamento mais próximo.
A associação de saúde como uso de medicamentos faz com que os pacientes
abusem das drogas. Os profissionais da área de saúde devem orientar os pacientes
e os seus familiares no sentido de evitar os abusos dos medicamentos ("overuse")
pelos eventos adversos. Com o fator limitante do tempo, há uma deterioração nas
consultas médicas e "não fazer" consome mais tempo que "fazer", isto é, não
solicitar exames nem prescrever medicamentos de validade duvidosa obriga ao
médico um esclarecimento a respeito da conduta expectante.
É necessário também voltar os olhos para o passado remoto e lembrar que à
arte de curar juntam-se muitos outros ingredientes compostos por crenças e
tradições populares que se confundem com as propriedades curativas de muitas
plantas silvestres.
As plantas medicinais têm lugar garantido no "folclore" brasileiro. Quem não
conhece a babosa, chá de quebra pedra, pata de vaca, chá de picão e extratos de
outras numerosas plantas? O efeito da maioria delas é desprovido de qualquer
fundamentação científica (evidências) e a sua manipulação por leigos pode
comprometer a qualidade. Pretensiosamente pleiteiam uma vaga na chamada medicina
alternativa (ou terapia não convencional).
Considerando-se que as doenças psicossomáticas têm grande prevalência,
permite-se até admitir que as chances de erro ao trilhar por este comportamento
são pequenas, alegando-se que os produtos disponibilizados, em sua maioria, não
oferece grandes riscos. Contudo, os riscos existem e devem ser considerados.
Produtos sem o devido controle de qualidade como prosaicos cosméticos aplicados
sobre o couro cabeludo mostraram efeito teratogênico, devido a contaminação por
chumbo.O uso tópico não é isento de efeitos indesejáveis. Cremes
"rejuvenescedores", muito populares, podem causá-los, além de quase nunca
cumprirem o prometido.
Recentemente, o misoprostol, de uso muito comum entre as mulheres brasileiras
para a prática abortiva, chamou a atenção da comunidade científica internacional
desde que se observou associar-se a malformações como a Síndrome de Möbius
(malformação crânio-facial) e malformações de membros. Estas foram observadas
nos filhos de pacientes que tiveram o abortamento frustrado com a utilização
desta droga. Além dessas anormalidades, em um estudo colaborativo
latino-americano de 4673 casos de malformações fetais (4980 controles), outras
malformações foram atribuídas ao uso do misoprostol: artrogripose, hidrocefalia,
holoprosencefalia e extrofia de bexiga.
O uso das isoflavonas é um exemplo atual da indicação imprópria e exagerada
de agentes ditos "homeopáticos" ou "naturais". A partir de estudos que mostram
uma menor sintomatologia de climatério em mulheres asiáticas atribuída ao
consumo de soja, muitas mulheres começaram a utilizar comprimidos de soja sem
controle de qualidade e sem supervisão médica. O uso indevido de isoflavonas,
manipuladas de maneira no mínimo descontrolada, tem causado efeitos colaterais
importantes e alterações discrásicas sangüíneas.
Além disso, recentes estudos mostram que uma série de substâncias ditas
"inocentes", como cremes de ginseng, têm ação proliferativa endometrial, podendo
levar a quadros hiperplásicos que algumas vezes podem representar lesões
precursoras de adenocarcinoma.
A automedicação pode mascarar diagnósticos na fase inicial da doença. Exemplo
marcante é no diagnóstico de apendicite aguda. O doente inicia com um quadro
frusto, se automedica com antibióticos. Como conseqüência, a apendicite aguda em
fase inicial, que se resolveria com uma apendicectomia tecnicamente fácil, pode
evoluir para um quadro de peritonite grave com consequências às vezes funestas.
Do mesmo modo, neoplasias gástricas e intestinais podem ter diagnósticos
mascarados e retardados pela melhora de sintomas promovida por bloqueadores de
bomba de próton ou outros medicamentos que agem no tubo digestivo.
Outro exemplo relevante é o uso abusivo de antibióticos, sem qualquer
critério. Além de freqüentemente ser desprovido de eficácia, pode facilitar o
aparecimento de cêpas de microorganismos resistentes, com óbvias repercussões
clínicas e prognósticas.
Embora deva ser veementemente combatida, não há nenhum gesto objetivo para o
desestímulo à automedicação por parte das autoridades públicas no contexto
nacional, o que faz pressupor não ser este assunto de relevância na visão dos
órgãos responsáveis. Todavia, há que se louvar a atitude e o discernimento do
Ministério da Saúde em decretar o controle de inúmeras drogas seguramente
teratogênicas como a talidomida, a isotretionina e diversos quimioterápicos.
O problema é universal, antigo e de grandes proporções. A automedicação pode
ser considerada uma forma de não adesão às orientações médicas e de saúde. Nesse
sentido, Hipócrates já sentenciou: "Toda vez que um indivíduo diz que segue
exatamente o que eu peço, está mentindo". Não há como acabar com a
automedicação, talvez pela própria condição humana de testar e arriscar
decisões. Há, contudo, meios para minimizá-la. Programas de orientação para
profissionais de saúde, farmacêuticos, balconistas e população em geral, além do
estímulo a fiscalização apropriada, são fundamentais nessa situação.